Por Rodrigo Cury
Foto: Fabio Mergulhão
Muito diferente do cenário que a noite de São Paulo vive atualmente, com grandes festas de techno acontecendo quase que semanalmente e a vinda de festivais internacionais renomados sendo realizados todos os anos no Brasil, o Lov.e surgiu no dia dos namorados de 1998 com a proposta de abrigar diferentes vertentes da música eletrônica e trazer a diversidade de público em um ambiente intimista e acolhedor, tendo a curadoria musical dos projetos semanais como um dos diferenciais.
Flyer de uma festa no Lov.e/Fábio Mergulhão
Inaugurado pelo casal Angelo Leuzzi e Flavia Ceccato, ambos já com uma história na noite paulistana, o Lov.e existiu por uma década e foi um dos principais responsáveis por levar a música eletrônica longe dos holofotes para o grande público. Angelo era empresário do ramo desde os tempos do Rose Bom Bom – um dos espaços mais icônicos da vida noturna paulistana durante os anos 80, depois inaugurou o Columbia – onde abrigava o after hours Hell`s Club, e anos mais tarde o Club B.A.S.E, inaugurado na segunda metade dos anos 90 em um antigo cinema da avenida Brigadeiro Luís Antônio. Flavia vivia a intensidade da noite paulistana há alguns anos e juntos abriram o B.A.S.E. Pouco tempo depois deram vida ao Lov.e, onde passou a administrá-lo 100% após o primeiro ano de funcionamento.
“Tínhamos o B.A.S.E, que era um club grande, com altos custos de funcionamento e, apesar das noites memoráveis que fizemos lá, com nomes como Danny Tenaglia, Kevin Saunderson, CJ Bolland entre muitos outros, a conta não fechava e tínhamos outros sócios que também pressionavam. Precisávamos de um espaço menor, bem clima de inferninho mesmo, aonde pudéssemos dar o direcionamento que quiséssemos”, relembra Ceccato, que conta também das mudanças no projeto inicial.
“No começo, o club ia se chamar E.LECTRO e seria uma caixa preta. Mas, em um jantar com um designer americano e amigo chamado Peter Schroff, mudamos a concepção do projeto. Fora que o Peter disse que o nome do club já estava tatuado na minha mão (eu tinha Love/Hate tatuado nos dedos) e naquele momento tudo fez sentido. Ele se propôs a fazer a decoração que seria totalmente Kitsch (totalmente eu) mas precisava voltar para L.A. Em tempo recorde e by fax, abrimos o Lov.e no dia dos namorados de 1998, inaugurando um novo capítulo na história da música eletrônica no Brasil”.
Flyer de uma festa no Lov.e/Fábio Mergulhão
O espaço de 550 metros quadrados localizado nas proximidades da avenida Juscelino Kubitschek – uma das principais de São Paulo, era composto por uma pista logo na entrada com a cabine do DJ ao fundo, e mais ao fundo ainda ficava a desejada área VIP comandada pelo host Kaka Trash. A área “VIP” também havia uma outra definição para o que hoje conhecemos como camarote. Neste lounge, as pessoas queriam entrar de todos os jeitos para se jogar em uma grande cama meio sofá, e as vezes até curtir o som de outro DJ. O sound system era o D.A.S, um dos melhores na época. Outra atração era a iluminação, que ao contrário dos clubs tradicionais – que usavam e abusavam dos lazers e efeitos disparados pelos canhões, no Lov.e este impacto vinha de diferentes luminárias dos anos 50, 60 e 70 (garimpados em L.A por Peter Schroff) espalhadas por todo o teto e que piscavam aleatoriamente.
Lov.e/ Fábio Mergulhão
Outros atrativos vieram para fomentar ainda mais o cenário da música eletrônica no país, como os cursos de DJs realizados em parceria com a Prefeitura de São Paulo, com 50% das vagas destinadas para pessoas de baixa renda, até cartazes colados nas paredes divulgando a campanha contra a super taxação do vinil importado – onde era cobrado regularmente 40% a mais sob o valor da nota fiscal, para que os discos pudessem ser retirados das agências dos Correios.
Outros projetos realizados com a Prefeitura de São Paulo, como o Lov.e por São Paulo, que levava música eletrônica de graça para o centro expandido da cidade, ou o Lov.e Tour, que trazia o conceito do clubinho para outros clubs em diferentes cidades do país, também foram de vital importância para a evolução do cenário que vivemos hoje.
Mas o diferencial estava mesmo em abrigar projetos de diferentes vertentes da música eletrônica durante quase todos os dias da semana: No início, além das noites voltadas ao house e techno, como a Lov.e for Friends, realizada às terças-feiras sob diferentes temas, havia também o drum`n`bass, um gênero até então restrito as festas em clubs da zona leste, como a Toco e a Sound Factory. O projeto Vibe, que acontecia toda quinta-feira trazia ninguém menos que DJ Marky como residente, que vira e mexe recebia os principais nomes do cenário do Reino Unido, além de MCs que acompanhavam os sets agitando ainda mais o público. Época também em que Mark Mark se tornara DJ Marky e logo depois despontara como um dos principais nomes do DnB em toda a Inglaterra.
Flyer de uma festa no Lov.e/ Fábio Mergulhão
A sexta-feira também vinha forte com o Technova, projeto captaneado primeiramente pelo promoter e DJ Oscar Bueno e logo depois por Eli Iwasa. Como residentes, trazia o DJ Mau Mau, já ídolo de toda a nação clubber da época, muito graças aos Hell`s, onde também era o residente, além de Daniel U.M, pesquisador muito à frente de seu tempo e também residente do Wicked, o after hours que acontecia nas manhãs de sábado no club Alôca. Renato Cohen, que já usava e abusava do mixer e tirava quase que novas faixas com apenas dois discos diferentes veio no ano seguinte para completar o trio de residentes.
Flyer do Technova, festa no Lov.e/ Fábio Mergulhão
Muitas foram as histórias vividas e momentos que são facilmente lembrados até os dias de hoje durante a história do Technova. Como o mês de janeiro de 2005, onde o clubinho recebeu três atrações internacionais (duas delas pesadonas) no mesmo mês. Naquele ano, o canadense Richie Hawtin veio no primeiro final de semana com a apresentação onde praticamente introduzira o Final Scratch no Brasil, antes mesmo do parceiro na Plus 8, John Acquaviva – um dos embaixadores do equipamento que anos depois se popularizou entre os DJs através do Serato.
Duas semanas depois era a vez do inglês Billy Nasty, nome pouco conhecido mas que era chance de surpreender – porque a curadoria de Eli Iwasa trazia isso como um dos pontos fortes. E no último final de semana foi a vez do pioneiro do techno bavário DJ Hell protagonizar outra noitassa daquelas. O
selo de Hell, o International Deejay Gigolos era uma febre por aqui naquela época, e vários artistas do casting, como Miss Kittin, The Hacker, David Carreta e DJ Tonio eram objetos de desejo para os promoters e para o público. O projeto também recebeu a turnê do alemão Anthony Rother, que trazia quase 200kg de equipamentos para produzir seu live P.A, além de Dave Clarke, Derrick May, Technasia, Laurent Garnier entre outros.
Outro acontecimento inesquecível, de acordo com o DJ Mau Mau, foi o aniversário dele em 2004 onde recebeu o chileno radicado em Berlim, Ricardo Villalobos. Na noite, ambos apresentaram long sets passeando pelas vertentes do house e do techno. “Foram vários momentos que poderia falar aqui, como este aniversário e também a oportunidade de tocar com nomes como Richie Hawtin, o duo Slam, Magda, e claro, as noites com o Laurent Garnier, que sempre foram muito especiais sendo verdadeiros acontecimentos para mim”, completa Mau, que ressalta ainda a importância de um intercâmbio que o Technova havia feito com o Rex Club – principal club de Paris e de toda a França, como um dos principais acontecimentos para o techno no Brasil durante o período. “Me lembro que fomos para Paris, eu, a Flavia (Ceccato), e a Eli para tocar no Rex e em outros clubs pela França, o que foi muito importante para que pudesse apresentar meu trabalho lá. Com isso acabei fazendo contatos importantes e fui convidado para lançar um ep pela gravadora francesa B Trax, uma das principais do país. Fiz uma homenagem ao Lov.e com um EP homônimo, que contava também com uma versão remix do Mr.C – que está no topo das mais vendidas da gravadora nos charts do Beatport até hoje”, relembra DJ Mau Mau, que atualmente possui residências mensais na festa Houseira, realizada uma vez por mês no Club Jerome, no Superafter, adentrando as manhãs de domingo no D-Edge e também na Festa Gang!, com edições itinerantes.
Flyers de festas no Lov.e/ Fábio Mergulhão
Renato Cohen também relembra uma das noites com o Ricardo Villalobos como a grande responsável pela sua residência no clubinho. “Tocava um techno mais pesado toda sexta na Alôca, e uma das vezes após tocar lá acabei indo para o Lov.e na primeira vez que ele (Villalobos) tocou. Ao chegar, de cara já me deparei com um som limpo e pelo menos uns 20 bpm a menos do que eu costumava tocar. E era o que eu estava afim naquele momento. Nesse dia virei para a Eli Iwasa e perguntei se eu poderia ser residente às sextas-feiras. Ela disse que sim e eu comecei. Isso acho que foi no ano 2000, e o Ricardo ainda nem era tão conhecido”. Para Cohen e vários outros DJs e frequentadores, o Lov.e era o lugar mais importante que existia para a música eletrônica nacional. Foi bem na época em que Renato Cohen havia lançado a faixa Pontapé, um dos principais hits do techno, e que consequentemente abriu as portas para extensas turnês internacionais elevando o techno brasileiro a outro patamar.
Eli Iwasa também coleciona momentos ao relembrar dos quase 10 anos em que organizou o Technova.” A inesquecível noite de segunda feira com Laurent Garnier, em que as 3h de set planejadas inicialmente se tornaram 8h, e que decretou-se feriado clubber forçado para muita gente no dia seguinte. As primeiras apresentações de Marco Carola e Vitalic, e o set do Ricardo Villalobos no aniversário do Mau Mau foram as melhores”, finaliza a ex- promoter, que logo depois se tornaria uma das principais DJs do país, colecionando apresentações nos principais clubs e festivais do mundo.
Legal ressaltar que naquela época, além do culto aos DJs existia também a cultura do flyer, que era uma maneira de divulgar a programação do mês e serviços, e uma forma de se obter descontos na entrada.
Flyer de uma festa no Lov.e/ Fábio Mergulhão
Aos sábados acontecia a noite Lov.Express com a residente Paula (conhecida hoje como Paula Chalup) e Doctor, e adentrava durante toda a manhã de domingo com o Paradise After Hours, idealizado pelo promoter Oscar Bueno, que assumira também a função de DJ residente. A noite se tornou quase que uma salvação depois do encerramento do Hell`s. Havia também o Mellow After Hours, que acontecia na Alôca e era organizado pelo DJ e promoter, Ronald. Mas no Lov.e a atmosfera era outra. As paredes azuis e as luminárias coloridas davam um tom mais alegre do que aquele ambiente mais sombrio e carregado dos after hours de techno. O Paradise deixou nomes extintos na cena de hoje, como George ACTV, que anos mais tarde passou a idealizar outro after hours, o Sunday Away, que acontecia no Tostex, um restaurante no Jardins, e Andre Juliani, que na época também empreendia em outro club pequeno (só que bem menor que o Lov.e), o Pix. “O Paradise estava começando e ainda não tinha local fixo. Me lembro que fizemos uma 3ª edição na casa de um amigo que era bem grande e bombou. O Angelo e a Flavia foram nesse dia e na hora me disseram que queriam levar o after para o club que tinham acabado de abrir. Eu super topei, e depois do Paradise veio o convite para fazer também as sextas-feiras. Criei então o Technova, que era um projeto aberto para novos DJs, por isso o nome. Depois inaugurei o Stereo – antigo club onde hoje funciona o D-Edge, e continuei por mais um ano com o Technova, até chamar a Eli Iwasa para organizá-lo. Fui para o Stereo mas mantive o Paradise After Hours no Lov.e por mais um tempo” resgata Oscar Bueno, que hoje gerencia a Casa da Luz e possui duas festas onde também é DJ residente, a Brutus e a Extúrdia.
Kaka Trash, personagem conhecido por controlar o acesso ao VIP Lounge diz que viu e ouviu de tudo lá – Desde a atriz Vera Fischer fervendo na pista, até elogios do vocalista do Jamiroquai, Jay Kay em noite fechada para convidados após o show da banda em São Paulo. “As pessoas inventavam as histórias mais bizarras para poderem entrar na área VIP, até então misteriosa para quem estava do lado de fora. Eu, claro, só deixava entrar quem eu já conhecia ou avaliasse estar no look para curtir a noite˜, finaliza Kaka Trash, que trabalhou durante anos na casa e hoje atua como stylist.
Com o sucesso do club e uma forte tendência para apostar em outras batidas e públicos diferentes, o Lov.e trouxe diretamente dos bailes do Rio de Janeiro, os big mixes do funk carioca do DJ Marlboro, conhecido como pioneiro do gênero para agitar as quartas-feiras. O resultado foi certeiro e anos depois da inauguração, formavam-se filas de uma nova galera a espera de conhecer o “hot spot” da rua Pequetita.
Pouco tempo antes do encerramento do espaço, o hip hop chegava para acolher rappers, b.boys, skatistas e afins com a Black Lov.e aos domingos, sob o comando do DJ Primo.
Mais do que a ousadia em levar sonoridades como o drum`n`bass para a zona sul, o Lov.e foi também um divisor de águas importante para a evolução da cena que temos hoje. Foi lá que ouvimos pela primeira vez por aqui o termo “all night long” para as apresentações de DJs que ligavam e desligavam o som sem passar o bastão a mais ninguém. Primeiro com o DJ Murphy, DJ habilidoso que recentemente chegara do hip hop para introduzir scratches no techno e com isso ganhar o Velho Continente. Depois foi a vez do DJ Mau Mau, que em uma de suas noites chegou a arriscar umas mixagens com três toca discos. O Lov.e também foi o local que deu os primeiros espaços para que o casal de DJs Ana e Davi a.k.a Petduo pudessem introduzir seus sets em seis toca discos. O mesmo vale para que os DJs Murphy vs Lukas pudessem apresentar o 4×4 set, sendo quatro pick ups para cada um.
E como público, o mais importante disso tudo é que estavam todos indo com o mesmo propósito, de se envolver com a música e viver uma experiência pouco convencional para aquele período. A diversidade era um dos pontos altos de cada noite. De cyber manos à skatistas, lá dentro todos viravam iguais com características únicas. Uma época de descobertas e que deixou saudades.