Quase uma década de Carlinhos

Por Jota Wagner

Foto de abertura: Cognição Eletrônica

A função da arte é fazer pensar. Tirar o público de um estado psicológico e levar a outro. Um artista não pode se atrever a pensar pelo espectador. A quem assiste, a quem ouve, é dado o direito irrevogável da interpretação.

No mundo da música eletrônica, desde o fatídico verão de 88, que entrou para a história como o segundo verão do amor, essa regra foi compreendida e aplicada em níveis inéditos. As ordens, que no início se resumiam ao básico “move your body” foram sendo suprimidas até que uma sequência rítmica tribal e percussiva tomou conta da maioria das horas da noite, e do dia seguinte.

Misturando essa música simbiótica (em pistas que vão de house a techno e suas vertentes), com locações urbanas apocalípticas, artes visuais e performances, a festa Carlos Capslock comemora neste janeiro (dia 17, na Fabriketa, em São Paulo) nove anos de existência, subversão, bom humor e a síntese deste “fazer pensar”.

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Foto: Cognição Eletrônica

Carlos Capslock, na persona de um nerd doidão, apareceu em São Paulo de surpresa, nascido da peculiar mente de Paulo Tessuto como um devaneio esquizofrênico. “Carlos Capslock, personagem da minha cabeça, encarnou e personificou-se pela primeira vez na Voodoohop, coletivo do qual eu fazia parte”, conta Tessuto. Carlos Capslock virou alter ego de Tessuto como DJ. Tempos depois, ganhou sua festa própria e tomou a cidade de assalto. Com características muito próprias, hoje o rolê faz parte do seleto grupo de eventos que têm sua própria nação, seu povo, ou como diz o seu criador, sua “craudi”.

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Foto: Cognição Eletrônica

Craudi esta que é parte da cara da festa. “Para mim, o grande diferencial da Capslock é seu público. O povo da festa é único, especial e diferente do que se vê em outras festas”, conta Letícia Frungillo, produtora de eventos como Dekmantel e Gop Tun no currículo, que assumiu essa função na Capslock no começo de 2019 numa guinada rumo à profissionalização total do projeto. Hoje, a Carlos Capslock realiza diversas edições no ano e chega a receber mais de 2.000 pessoas por noite. Depois de quatro anos fixa na extinta Trackers no centrão, entendeu-se itinerante, cresceu, incomodou, consolidou-se, ocupou as ruas de SP em diversas edições gratuitas e hoje várias de suas criações estéticas pioneiras (além do formato de negócio) se espalharam por outros eventos em São Paulo e também por todo o país. É o movimento capslocktico, o capslockismo.

O cuidado com as performances é uma destas características. Hoje a festa tem um time residente de performers, além de abrir espaço para new faces. “Os performers têm um horário estabelecido. Eles sabem a hora que têm de subir, onde dançar e como não atrapalhar o DJ”, explica Dario Bion, maquiador de Tessuto e de alguns performers.  Hoje, a curadoria das performances é tratada com o mesmo cuidado e planejamento do time de DJs.

O elemento performático, aliado à locação (galpões fabris esquecidos há décadas) funciona como uma antidecoração. Um mondo bizarro dos festivais dance mais populares do mundo, escancarando a abissal diferença conceitual entre as festas. Transgêneros e drags não pagam. Contestação. Subversão. Ou como conta Laércio (o L_cio, sensação dos live PAs brasileiros e membro do time de residentes). “O rolê já foi mais de contestação, hoje é mais de subversão, na minha opinião. Era mais explícito nas contestações sociais e hoje eu sinto que a coisa é mais subversiva do que de contestação, de luta, de embate. A coisa fica mais ali no nível da piada, com um tema às vezes mais pesado, às vezes mais leve, mas sempre com um viés de fazer a pessoa pensar”.

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Foto: Cognição Eletrônica

Há uma preocupação com a diversidade e a liberdade, coisa que em algum momento começou a ser estrangulada nos clubs. “Chegou um momento em que os clubs tinham mais regras do que uma igreja”, completa Dario. De fato, um dos elementos comuns a festas que se tornaram capítulo obrigatório na história da música dançante são as pessoas que “se encontraram” na pista. Depoimentos de gente que finalmente descobriu que havia, em um mundo hostil, tocas de coelho por onde se entra para encontrar seus chapeleiros, ovos falantes e gatos irônicos.

Patrícia Vasconcellos, a DJ Due, estreia como residente da Carlos Capslock na edição de aniversário. “A Capslock foi a primeira festa da minha vida. Adentrei em outro universo e não saí mais. Tudo na festa é feito pra gente pensar fora da caixinha”, diz a DJ. Celso Francisco, que hoje advoga para o coletivo, corrobora. “Quando vim para São Paulo em 2005 a coisa era bem diferente. Em 2015, quando voltei à noite, vi na Capslock a questão da montação, da aceitação LBGT e da música como uma identificação”.

Uma gigantesca parte da identidade da festa escorre da mente desta interessante figura da noite paulistana que é Paulo Tessuto. De certa forma, Tessuto trouxe de volta a coisa do DJ personagem, uma espécie de DJ Rush da atualidade, porém mais versátil musicalmente e ainda mais ousado visualmente. Suas montações, que obviamente recebem um cuidado muito especial nas edições da Carlos Capslock, personificam o que a festa representa. Andrógino, provocativo e ainda assim bem-humorado. Um extrato do fim do mundo com temperos de foda-se.

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Michael Mayer, Tessuto e craudi – Foto: Cognição Eletrônica

O mentor tem uma visão muito interessante da noite e também de São Paulo. Hoje um DJ estabelecido no cenário nacional, já excursionou nove vezes a Berlim e tempera essa referência em sua festa. “Como produtores (de festa) São Paulo tem sim o seu estilo. Pelas viagens que eu tive, acho a cena daqui mais fresca. O entusiasmo é diferente. Apesar de termos sido influenciados por este movimento, aqui não é a Europa. Temos nosso jeito de fazer e nosso jeito de viver também. Aqui a gente tem a questão social que traz um ar mais selvagem. A Capslock foi a primeira festa que tinha um teor político por trás. Eu não queria só propor uma nova maneira de pensar para as pessoas, mas também de desbanalizar a profissão de produtor cultural e DJ”, diz Tessuto.

Musicalmente, a festa transita entre a house e o techno ao longo de suas doze horas de ferveção. A Carlos Capslock termina lá pelo meio-dia seguinte, sempre com Tessuto fechando. Rola um desconto para quem resolver aparecer de manhã, garantindo a renovação da vibe e motivando quem já está dançando desde o começo da noite. O line up mistura convidados a um time de residentes, temperado com alguma atração gringa. O alemão Sebastian Voigt é residente do Wilde Renate em Berlim e da festa paulistana, abrindo a estrada para as excursões anuais dos DJs da festa à Alemanha. Outra característica bacana da curadoria é a de estar sempre abrindo a cabine para DJs de gerações anteriores, como por exemplo Magal, Mau Mau e Renato Cohen. O time de atrações internacionais que já tocaram seus discos na festa é bastante respeitável: Andy Blake, Alexander Robotnik, Pachanga Boys, Isolee, Ryan Elliot, Virginia, DJ Hell, Anna, Michael Mayer e Danny Daze.

Apesar de ter elementos do punk, do anarquismo e de mais um monte de cores temperadas com um quê de Blade Runner, a Carlos Capslock traz muito da tal economia de terceira via. Da coletividade. Economia (bastante) criativa. Esse conceito, largamente absorvido nos Estados Unidos e na Europa, também é uma novidade por aqui. Música não é produto. Música é arte. Um artista não precisa necessariamente de embalagem. Ou, pelo menos, a embalagem não precisa caber numa prateleira.

O primeiro tentáculo da festa a ostentar suas ventosas é o selo, o MEMNGTN que atualmente trabalha seu décimo lançamento. As músicas são distribuídas pela alemã Kompakt (do Michael Mayer, entrevistado nesta edição) e apresentam ao mundo artistas como Zopelar, Roctiv, Any Mello, entre outros que tocaram ou são residentes da Carlos Capslock. No pente estão lançamentos de Max Underson, respeitadíssimo produtor de techno paulistano, e Shift (Gabi, que anteriormente formava duo com o DJ Eto).

A festa ainda tem no currículo 35 workshops, três feiras orgânicas, exposições gratuitas e ainda ajudou a formar a biblioteca do Cine Marrocos (uma das locações mais emblemáticas da festa, através de campanhas de doação. A edição de aniversário da Carlos Capslock contará com Magal, Danny Daze, Sebastian Voigt, Carlos Valdes, entre vários outros convidados e residentes. O line-up de artistas visuais também é divulgado: Elloanigena Onassis, Ferdi Gi, Modular Dreams, Cece Grace e mais.

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Foto: Cognição Eletrônica

Assim como a Carlos Capslock cultua os espaços esquecidos da cidade, a música que mais traduz São Paulo, seus artistas e principalmente seu público, é fundamental reconhecer a importância de eventos como esse em nossas vidas. Não é fácil, definitivamente, tocar um empreendimento assim, principalmente, em condições adversas e tempos hostis ao que é diferente como os que vivemos. A revolução comportamental que este tipo de rolê provoca areja, traz novas ideias e ajuda com que clubs, festivais, governo e também o público evolua, mude seus conceitos sobre a noite e entenda que as coisas não devem e não podem ficar sempre do mesmo jeito, principalmente na pista de dança. Quantas vezes já não testemunhamos gêneros e cenas musicais parando no tempo e se tornando um nicho de nostalgia flashback, fadados a saciar momentaneamente a triste memória afetiva em algumas dúzias de pessoas, que fatalmente voltarão para casa ainda mais saudosistas?

Afinal, a função da arte é fazer pensar. Saiba mais sobre o evento aqui.

 

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