Por Rodrigo Cury
Foto Crystalmafia
Edição e revisão Alexandre Albini
Com quase três décadas dedicadas ao techno, Ellen Allien já fez de tudo para fomentar a cultura dos clubs. É DJ, produtora, chefe do selo BPitch Control, idealizadora de festas e designer de camisetas através de sua marca homônima. Neste período lançou sete álbuns de estúdio, dezenas de EPs e já remixou músicas para uma quantidade considerável de artistas, como Mountie Kimbie, na gravadora Warp, e até para o Depeche Mode, só para citar os mais recentes.
A alemã, símbolo do techno berlinense, acumula residências nos tempos áureos do Tresor Club e do extinto E-Werk nos anos 90; e, claro, apresentações na Love Parade e Melt! Festival, nesta mesma década. Atualmente possui residências nos clubs Nitsa, em Barcelona, na festa Circo Loco, que acontece no DC 10 em Ibiza, além de viajar com frequência para tocar nas principais festas ao redor do mundo.
Com um fim de semana de folga, mas bem agitado, a artista encontrou tempo após a gig para prestigiar eventos, como da amiga Claudia Assef, no Women’s Music Event, visita a exposições de arte (no Museu da Imagem e do Som de São Paulo), e a intenção de conferir a apresentação da Octo Octa na ODD, que acabou não se concretizando.
Momentos antes de embarcar para mais uma edição do Miami Music Week, Ellen me recebeu no hotel que estava hospedada. Em apenas cinco minutos já pude sentir toda sua empolgação, fruto de como ela leva a vida e se dedica genuinamente ao techno. Comecei perguntando como fazia para manter toda esta energia, e me contou que em Valência, na véspera de vir ao Brasil, dormiu antes do set, depois pegou um voo para Lisboa e lá conseguiu descansar por mais algumas horas. Chegando em São Paulo, alimentou-se bem, com direito a suco de maracujá e pão de queijo, que ela adora.
Em sua vibrante apresentação no The Hole Festival, mostrou mais uma vez todo comprometimento e paixão em conduzir a pista, mesclando algumas novidades com antigas composições de sua autoria, como um dos remixes da faixa “Freak”, que abriu o set. Super simpática e disponível, nossa conversa abordou assuntos dos mais diversos — desde a função dos clubs como aglomeradores de experiências, até sua visão crítica que envolve o sistema da música eletrônica.
Como seguidor do techno desde a adolescência lembro de grandes acontecimentos, como Jeff Mills tocando com a Orquestra Filarmônica de Montpellier em 2006 ou a Love Parade transformando Berlim em uma imensa rave, com um milhão de pessoas nas ruas durante os anos 90. Em sua opinião, quais os fatos mais marcantes do gênero?
Em primeiro lugar a Love Parade, pois fiz parte desta história como DJ, a partir da metade dos anos 90. Depois o Glastonbury, na Inglaterra. Nunca vi um festival tão imenso e bonito em toda a minha vida. Sem gestão de marca, sem anúncios, com pessoas super amigáveis e dispostas a interagir. É como se fosse uma cidade de clubs e palcos. Uma mistura de estilos musicais: hippie, rock e techno, tudo junto! É, talvez, o festival mais antigo do mundo. Você tem que ir!
Você vive a cultura clubber há quase três décadas. O que mudou durante este período?
A cena cresceu muito, os sistemas de som ganharam potência e qualidade, os toca-discos ficaram ainda melhores, o que facilita nossa vida como DJ. Soma-se a isso o surgimento de novos formatos de áudio, como MP3 e Three Wave, o que ajuda nas viagens. Sempre levo meus discos, mas é importante ter outras possibilidades caso algo dê errado. Acredito que no passado a competição entre artistas, promoters e organizadores era mais intensa e estressante. Hoje é possível vivenciar esta cultura em diversas partes do mundo — antigamente era mais em Berlim e no Reino Unido. Outro fator interessante é que agora é o público quem escolhe aonde quer ir e o que ouvir, porque existem muito mais opções. Mesmo com muito mais DJs mulheres, o techno ainda é um universo masculino, mas para mim como mulher, ficou mais fácil.
Sobre as mulheres DJs de techno… isso era comum vinte anos atrás?
Mais ou menos. Sempre houveram mulheres discotecando house e techno, como a K-Hand, Miss Djax, e outras menos conhecidas, principalmente em Berlim. Muitas ficaram sem destaque porque não fizeram disso um negócio, não criaram gravadoras e não se envolveram com este cenário diretamente. Mas agora isso é diferente porque existem mais clubs, público e por isso necessitam de mais DJs. O “bolo” ficou maior, com melhores profissionais, e a música se tornou acessível para todos através da internet, o que acho lindo.
Em termos de negócios, São Paulo vive o momento mais estruturado no cenário da música eletrônica e do techno de todos os tempos, com festas de rua fazendo parte do calendário oficial de eventos da cidade, grandes nomes internacionais se apresentando toda semana, além de festivais estrangeiros acontecendo anualmente. Se pudesse comparar a vida noturna de Berlim com a de São Paulo, o que diria?
São Paulo tem uma vida noturna bastante forte, assim como Berlim. A cena gay também é notória em ambas as cidades, e muitas vezes as festas não têm horário definido para acabar. Me lembro que a primeira vez que cheguei aqui para tocar no D-Edge, achei incrível o mix de pessoas, e não importava se você era homem ou mulher, todo mundo ia junto ao banheiro. Uma loucura! Agora ambas as cenas cresceram e se tornaram mais comerciais, com mais gente escutando música e indo aos clubs e festivais, o que é comum em metrópoles que possuem uma grande concentração de pessoas.
Falando em novos projetos, explique as ideias por trás de We are not alone e Vinylism.
O We are not alone é uma série de festas que estou fazendo em diferentes cidades pela Europa, em que convidamos artistas que amamos. Não é sobre a minha gravadora ou qualquer outra coisa e sim sobre música. Em Berlin acontece no Griessmuehle, novo club de Neuköln, com 24 horas de duração, sempre de domingo para segunda — a próxima acontece em abril. Já o Vinylism é um projeto realizado em diferentes lojas de discos ao redor do mundo, onde a ideia é sempre tocar o que há disponível nas prateleiras e convidar artistas locais, mas as vezes acabo me apresentando sozinha. É uma maneira de ativar estes espaços tão importantes para os DJs.
Um dos momentos mais vibrantes da apresentação no The Hole Festival foi quando você tocou sua versão remix de “Cover Me”, do último álbum do Depeche Mode. Não sei se sabe, mas São Paulo está em contagem regressiva para a receber a turnê Global Spirit. Conte como começou sua relação com a banda.
O Depeche Mode remete a minha infância, me fez abrir os ouvidos com faixas diferentes para a época, especialmente por mesclarem eletrônica com pop e com o dark. É o time dos sonhos da música, uma das melhores bandas do mundo. Quando eles me perguntaram se eu gostaria de remixar alguma das faixas do álbum Spirit, escolhi “Cover Me” porque é a minha favorita deste disco. Ao enviaram as linhas cruas da composição, vi que todas as partes eram fantásticas — bateria, synths, voz… Então pensei: Como vou fazer para criar uma nova versão de uma música tão incrível? Não conseguiria nada melhor do que eles já fizeram. Aí me veio a ideia de produzir algo simples que pudesse tocar, meio acid, mas do jeito Berlim.
Tem mais alguma coisa que gostaria de mencionar?
Gostaria de agradecer pelo calor do público e pela conexão que sinto em todas as vezes que me apresentei aqui no Brasil. Não me considero uma pessoa com ego de superestrela. Não é porque estou no palco como DJ que sou diferente. Gosto de me sentir conectada e de trocar energia com as pessoas que estão dançando. E se isto não acontece, em qualquer lugar que seja, não consigo voltar para me apresentar novamente — como já aconteceu. Para mim isso tudo é algo muito espiritual. Os clubs são pontos de encontro de pessoas que se conectam por uma razão, de sair do sistema convencional e construir um outro sistema. Tem a ver com um modo de vida, o de encontrar novas e criativas soluções para sobreviver. Criar algo inédito, único e próprio e poder viver disso, isso pra mim é a verdadeira arte.