Por Luiza Serrano
Foto de abertura: Annyl Lynna
Em um café da manhã em meio a quarentena, distantes fisicamente, mas, conectados não só tecnologicamente como conceitualmente, e afim de fazer algo novo reverberar, Anny Lynna, Brune, Entropia – Entalpia, Érica, L_cio, Mari Herzer, RHR e Stroka criaram um grupo no WhatsApp apelidado como “Longe Mais Perto”.
O grupo, resultado do ócio do isolamento social – que nada tem a ver com o criativo, e você vai comprovar mais adiante – principalmente, para artistas, começou a se entrelaçar como uma teia, dialogando com “as mãos que hoje se tocam indiretamente”.
A ideia de produzirem música juntos, que já era de longa data, mas, limitada pela agenda cheia de compromissos, deu lugar a possibilidade de construir mais do que uma narrativa musical, uma comunidade aberta através da música, das artes visuais e das palavras, em tempos que prometem – e já entraram – para a história.
O “Longe Mais Perto” do WhatsApp se transformou em NÓS e, nesta quinta-feira, 16 de julho, o ponto de partida vem como um encontro aberto ao público, às 20h, em uma videoconferência gratuita pelo Sympla, na qual vão compartilhar os processos de criação do projeto. “Faremos o evento de lançamento do projeto com a interação dxs artistas com o público – contando sobre seus processos criativos e técnicas usadas. Nesse encontro faremos a audição em primeira mão das músicas do EP, além do texto produzido pela Brune e também a apresentação do processo de criação da obra de arte feita pela Lynna com tecido e bordado. E entre os talks, o live da Erica e também do Entropia-Entalpia”, explica L_cio.
Na sexta-feira, 17 de julho, o EP com três faixas inéditas, acolhido pelo selo brasileiro Baphyphyna que, inclusive, já constrói uma linha que une música, arte e design, estará disponível para compra pela plataforma BANDCAMP, com “Subterrâneo”, por Entropia-Entalpia & RHR; “Teia”, por L_cio & Mari Herzer; e “Convite”, por Érica & Stroka. As artes são assinadas pela artista visual Annyl Lynna e os textos foram escritos por Brune, um desdobramento da inspiração musical gerada por todo o conceito do projeto que ativa os sentidos: audição, visão e, sim, reflexão, que vem em forma das batidas, teias e poesias.
Annyl Lynna
A House Mag ouviu os artistas envolvidos nessa comunidade que vai pela contramão da sociedade instantânea em que vivemos com a proposta de revelar vozes, ideias, conceitos, processos e uma importante mensagem: NÓS EXISTIMOS!
HM – Vocês vão lançar mais do que um EP, mas uma construção artística que dialoga entre música, arte, tecnologia. Conta pra gente um pouco desse processo, principalmente, por ter sido todo a distância.
L_cio: Foi um processo super orgânico, desde a criação até a finalização de todo material visual, escrito e sonoro. Por vivermos em condição de isolamento, as conexões que já existiam entre nós fisicamente (nas festas, workshops e eventos) tornou-se digital e acabou desencadeando uma troca artística super saudável.
Brune: A ideia seria justamente a possibilidade de criar em conjunto – um conjunto que se mostra ainda mais importante quando estamos todos afastadxs fisicamente. O conjunto nesse caso é múltiplo, porque parte da ideia de agregar vertentes artísticas diversas, com o objetivo de que isso fortaleça o núcleo e a própria produção desse núcleo.
Érica: Eu gosto demais de trabalhar assim, integrando as artes. Testar essa interação com outros artistas com quem tenho imensa afinidade e com quem colaborei poucas vezes na vida, e de forma virtual, foi inédito para mim. Eu sempre achei que muito mais coisas poderiam ser feitas on-line, por facilitar colaborações com produtores com quem temos afinidade, mas de quem moramos longe. O processo foi pragmático e rápido. Acho que quando existe já uma afinidade entre indivíduos de um grupo, pouco se precisa discutir ou avaliar, existe uma confiança coletiva que permite uma maior fluidez no trabalho.
Entropia: eu pessoalmente já queria fazer mais som com essa galera, mas, acho que nunca tínhamos tempo por conta das agendas. Agora com o isolamento e a distância das pistas tivemos a ocasião perfeita.
Lynna: Foi bastante orgânico. Tive o prazer em acrescentar ao NÓS com o visual, sempre houve muito diálogo entre todos, então criei algo que absorvesse o que estava sendo gerado, compartilhei os passos do processo de desenvolvimento da peça, até a sua finalização.
HM – Essa ideia já estava borbulhando antes da quarentena, ou foi resultado desse tempo (in) quieto que vivemos?
Lynna: Acho que todo artista pensa em momentos de partilha criativa, mas, às vezes, a rotina se torna “incontrol”, não só as nossas como as das parcerias. Os momentos já não eram muito favoráveis a artistas independentes e a pandemia conseguiu dificultar drasticamente, uma vez que muitos, mantinham suas rendas com apresentações. Não ouso dizer que tenha um lado bom nessa pandemia, ela gerou tanto por necessidade, em como explorarmos novas maneiras para continuarmos atuantes; e como por mais tempo em nossas rotinas devido ao isolamento, que em contrapartida ao caos, atuou na possibilidade de que interações criassem vida.
L_cio: Acho que foi fruto de uma condição muito triste a qual vivemos e de uma necessidade de nos reinventarmos.
HM – Qual o fio que liga os produtores envolvidos nesse EP?
L_cio: Amizade e conexões positivas.
Brune: São amigues e colegxs de trabalho. Já trabalhei antes com algumas pessoas do núcleo ou já conhecia o trabalho das outras.
Érica: Vejo como fio a nossa atuação na noite paulistana e o fato de sermos aliados na performance ao fazer musical, seja com live acts, com o corpo, com a discotecagem. Acredito que todos tenhamos compromisso com a ação, de praticar a teoria e lançar-se às obras.
Entropia: Acho que a versatilidade que todo mundo se propõe ao fazer música junto é o principal.
HM – “Nós Existimos”: como se fazer presente, e com voz, em uma sociedade tão “fast food”, que consome muitas vezes sem absorver?
Lynna: Toda mudança significativa social em todos seus campos é bastante sensível nas expressões artísticas. Nesse momento, transformar o desamparo em abrigo tornou-se meta para artistas alternativos. Ela fala sobre o poder do plural, as ligações que firmadas trazem a voz potente, que clama pelo reconhecimento de artistas por seus trabalhos.
L_cio: Penso que a relevância do que queremos apresentar sustenta a necessidade de reflexão, atenção e envolvimento do público em relação a arte. Isso faz com que o que produzimos seja experimentado de uma forma mais profunda.
Brune: Para mim, temos que assumir que o lado fast-food existe (afinal ele é predominante), mas não devemos nos tomar inteiramente por isso, tem que ter um lado de resistência e teimosia em acreditar que há brechas, há ainda disponibilidade para absorver as coisas de uma outra forma. E criar, propor de forma até certo ponto espontânea, colocar no mundo e ver no que dá. É um processo imprevisível mas também que deve existir, justamente como pontos (ou redes) de resistência.
Érica: O presente é o momento que se repete eternamente. As artes têm diversas formas de se afirmar no presente e criar uma espécie de suspensão do tempo. Para termos a atenção de um público, utilizamos técnicas de alteração de consciência para provocar transe utilizando batidas, movimentos, artes visuais e palavras.
“Acredito que nós nos fazemos presentes por criarmos justamente essas repetições repetidamente [rs]. Insistimos em produzir batidas, melodias e tracks, insistimos em agir.”
Entropia: Produzindo conteúdos que tragam uma reflexão. A sociedade fast food é fruto de uma cultura e de uma grande geração de conteúdos fast food. É uma questão de ir um pouco na contramão disso aí com arte que faz pensar.
HM – A Baphyphyna já desenvolve um trabalho que une música, design, conceito. Como foi a incorporação dessa ideia do Nós entre os lançamentos dessa comunidade (selo).
Érica: O trabalho da Baphyphyna é de ser uma plataforma para quem tem uma relação forte com o Brasil, sendo daqui ou não, mas que dialogue com a cena, seja através da música, poesia, performance ou produção visual. Faz todo sentido abraçar o NÓS por esse trabalho não ser só de música, mas também integra a poesia da Brune e essa tecelagem maravilhosa da Annyl Lynna.
HM – Conta um pouco sobre a arte desenvolvida pela Annyl Lynna? E os textos?
Lynna: Explorei através das conexões e experimentos, transpor em uma tela a desconstrução do caos, usando de linhas e bordados, o poder das junções, que constrói a ponte que liga, as linhas que amarram e os terrenos que o conjunto é capaz de alcançar.
Brune: Como fiz os textos, vou falar deles. As tracks e as artes visuais já estavam mais ou menos prontas, e a partir disso eu pude criar o poema, o release e dar nome às faixas – para dar uma espécie de unidade conceitual para tudo. Foi um processo fluído e integrado, as ideias foram vindo naturalmente a partir desse material que já existia, de coisas que eu particularmente tinha a dizer nesse momento, e também a partir desse contexto que se impôs para nós de forma tão dura nesse momento – isso já inspira um certo sentimento de unidade para as palavras deslancharem.
HM – Como criadores, vocês sugerem como experimentar esse trabalho?
Lynna: O conteúdo sonoro gerado no EP, destrava as barreiras entre música para se ouvir em casa, de música para se ouvir nas pistas. Acredito que vou ouvir elas muitas vezes nas pistas, como já tenho presenciado nas transmissões de seus produtores. De qualquer modo, acho que toda absorção da experiência é válida, e devido ao momento a minha sugestão é que se possível compre e escute em casa logo menos. Já a obra original que deu capa ao EP foi bordada a mão, com muito carinho e amor, e vai estar disponível para venda pelo Sympla. Podendo ser adquirido e fazer parte da parede de alguém. O valor arrecadado será partilhado entre todos artistas envolvidos.
L_cio: A experimentação é algo bem pessoal, porém, tentamos usar diferentes linguagens (sonora, visual e verbal) como forma de sentir nosso processo de criação.
Brune: Eu não sugeriria nenhuma forma a priori, acho que os elementos do trabalho estão dispostos para as pessoas absorverem como tiverem vontade. Acho massa essa imprevisibilidade de como as coisas que criamos serão recebidas pelas pessoas. A ideia também é um pouco essa: colocar coisas no mundo e ver como elas podem desabrochar de um jeito que nem nós mesmxs previmos.
Entropia: Numa situação que você possa prestar atenção total as faixas, sem estar fazendo mais nada. São só três músicas, então da para ouvir as três em sequência bem rápido sem perder o foco :)
HM – E sobre o encontro no dia 16 de julho, como será? A gente sabe que a quarentena interrompeu o diálogo e o termômetro do produtor com a pista, mas, trouxe novas possibilidades de contato e projetos como esse, você acha que esse processo mais teórico, de aprofundamento em processos, permanecerá pós quarentena? O que isso agrega ao trabalho?
Lynna: Vai ser um encontro virtual lindo, com talk sobre processos de cada artista, audição das músicas que compõem o EP e live com dois dos artistas produtores.
Durante esse período, diversas alternativas foram surgindo e que eu acredito que não serão apenas momentâneas. O compartilhamento de processos ou o uso de plataformas virtuais estendem o diálogo a pessoas que antes eram impossibilitadas do acesso a tais informações seja por localidade ou financeiramente. Conteúdos que geram troca e experiências reais, adicionam não só ao trabalho do artista como ao público, que consegue permitir-se absorver e criar diálogos.
Brune: O encontro tem o intuito de aproximar as pessoas que criaram das pessoas que recebem o trabalho, e criar uma ponte de diálogo entre esses dois lados – que podem ser um só (é o que baseia a ideia de um “nós”, de um conjunto). Eu acredito que isso não só pode continuar depois da quarentena, como também já acontecia em diversos eventos e ações dxs artistxs antes da pandemia (aproximar produtores e público).
Entropia: Pra mim a parte mais difícil de fazer música e tocar durante a quarentena é essa distância do público. O calor e a energia de uma pista nunca vai ser transmitida on-line.
“Acho que reflexão é sempre bom e os momentos de pausa são os momentos que a gente consegue fazer isso. Eu pessoalmente parei de tentar fazer previsões para quando a gente voltar a poder ocupar os lugares com festa música e aglomerações gostosas.”
HM – Por que o BANDCAMP?
Entropia: O BANDCAMP é uma plataforma que desde sempre, e ainda mais agora durante a pandemia, tem trazido mais autonomia para os artistas em relação às plataformas mais mainstream. Além do sistema de remuneração ser mais justo, ela também é bem mais aberta permitindo inclusive que quem compra possa pagar mais do que o mínimo pedido pela obra. Eu, de vez em quando, solto faixas de graça no meu BANDCAMP como uma forma de agradecer as pessoas que compram as faixas pagas e, mesmo assim, muita gente que quer e pode ajudar prefere deixar uma contribuição. Para mim a plataforma é uma das únicas que trata o artista como ele deve ser tratado na minha visão: como a matéria prima desse mercado da música.
HM – Tem alguma curiosidade ou algo que você gostaria de mencionar que não citamos aqui?
L_cio: Esse projeto será realizado mais vezes, com mais parcerias e também lançado por outros selos que tenham interesse em colaborar com esse processo de troca e criação artística.