O que Ella tem de especial

Por Gabriela Loschi – colaboração de Isabela Junqueira

Foto de abertura: Gabriel Quintão

Ella [de Rafaella] de Vuono é uma das personagens mais intrigantes de um cenário pulsante e criativo, mas nem sempre tão inovador, hoje no Brasil. Nome que surgiu recentemente na cena eletrônica, Ella trouxe consigo inovação no formato de suas apresentações, mostrando a plenitude da expressão corporal em meio a técnicas de discotecagem de fazer inveja a qualquer veterano – habilidade que começou a desenvolver há mais de 13 anos com os CD-Js 100 da Pioneer, numa época em que não existiam escolas de DJs como a AIMEC em sua cidade, Campinas. “Fui aprendendo como dava, com dicas de amigos. Mais para frente realizei um desejo pessoal: aprendi a discotecar com vinil”, conta a DJ.

caos_2018_crdito__bill_ranier_500

Foto: Bill Ranier

O esforço em aprimorar suas técnicas é apenas uma das pilastras de sua agulha, que tem muita bala, e por isso mesmo seu repertório imbuído de referências infinitas se destaca, a ponto de ela se tornar residente da Capslock – um dos coletivos mais importantes do Brasil, leia mais na nesta entrevista com Paulo Tessuto. Ativista, dotada de mensagens poderosas e profundas que empoderam e se entrelaçam à alegria de suas apresentações e de prêmios importantes, como o primeiro lugar na Burn Residency de 2019, Ella de Vuono deixa a personalidade fluir e constrói sua marca com vigor e brilho especiais. Batemos um papo com essa artista singular em pleno crescimento sobre o momento que ela atravessa.

>> Ella de Vuono no top do Burn Residency 2019 <<

HM – Você é de Campinas, uma cidade muito envolvida com a música eletrônica. Como foi o início da sua carreira, você nem sempre se apresentou como Ella, certo?

Isso mesmo, discoteco há 13 anos. Em 2006 eu fazia parte do duo L.OVERdose, que durou 5 anos. Quando acabou, eu dei um tempo e, como acontece com muitos, a sociedade cobra um status, um curso superior, um bom emprego “normal”. Tentei me adequar aos padrões e fui extremamente infeliz, isso me deixou muito doente. Quando um artista não alimenta sua alma, ele adoece. Vi que aquela vida não tinha nada a ver comigo. Em 2012, decidi largar tudo e correr atrás do meu sonho. Me envolvi com festas, com a cena pop também, participei de concursos de DJs, estudei produção musical, entrei para o corpo docente da [escola de DJs] AIMEC, fui morar na Europa e, em 2017, comecei a me apresentar como Ella De Vuono, logo após ser convidada para ser residente da Carlos Capslock.

HM – De que forma sua experiência no exterior te modificou?

Fiquei seis meses em Londres e cinco em Barcelona. Essa experiência me modificou muito. Saí do Brasil desacreditada, duvidando de mim mesma, da minha capacidade, me questionando se eu era capaz de seguir com meu sonho de ser DJ. Então eu fui morar fora, pois, como muitos, a gente acha que tem mais oportunidade, se você é bom, eles te dão valor. Isso é mito. Lá é igual, se não pior que aqui. Os DJs tocam de graça, sim, eles têm que ter uma lista legal de amigos quando vão tocar, têm que divulgar a festa e tudo o mais. A diferença é: lá a concorrência é muito maior, pois se tem fácil acesso aos equipamentos e aos eventos. Lá, de cada 10 pessoas, 5 são DJs, facilmente.

Quando toquei num club lá, entendi que, sim, eu era capaz e tinha potencial. O set foi incrível, tão bom que, assim como aconteceu com a Capslock, me chamaram para ser residente com apenas uma apresentação. Morando lá, eu percebi o quão boa minha vida era aqui e o quanto eu estava enganada sobre tudo o que eu pensava na época em que decidi morar fora.

HM – Ser professora numa escola de DJs provavelmente te fez ter contato com as mais diversas vertentes da música. Como isso influenciou o seu olhar sobre seu próprio trabalho?

Ser professora me ensinou muito, não só tecnicamente, mas também em termos de comportamento. Por muito tempo eu achava que era lixo qualquer estilo musical que fosse diferente daquele que eu tocava. Depois eu percebi que não, que estão todos ali com o mesmo propósito, todos tentando se comunicar e se conectar. E, mais, as chances de uma pessoa que gosta de música eletrônica mais comercial começar a gostar do meu trabalho daqui a uns anos são muito maiores do que para uma pessoa que não está ouvindo música eletrônica. Isso fez com que eu deixasse minha sonoridade mais acessível, ampla, tentando me limitar menos dentro de uma única vertente, sem cair na mediocridade, na obviedade, no famoso TOP #10 das mais vendidas.

HM – O body painting se tornou sua marca e você sempre toca com pinturas pelo corpo e looks ousados. Que mensagens essa aparência carrega?

A ideia é realmente fazer um show. Prender a atenção do público não só pelos ouvidos, mas pelos olhos. Muitas vezes o body painting carrega uma mensagem condizente com o tema da festa ou com algum momento que estamos atravessando. Em outras, é apenas uma arte abstrata para fazer o público viajar no visual mesmo. A mensagem que eu quero passar é sempre de liberdade, eu quero mais é que todos dancem sem medo de se soltar, quero que as pessoas se vistam da maneira que acharem melhor.

caos_2019__crdito__recreioclubber_500
Foto: Recreio Clubber

HM – Não é muito comum ver DJs se apresentarem montados como você. Isso vem também de uma influência dos performers, que a cada dia ganham mais espaço ao lado dos DJs?

Confesso que no início não pensei nas performers, aconteceu naturalmente. O body painting foi sugerido pela artista Silvia Campi, que é a responsável por ele hoje. Mas já tem um tempo que as performers me inspiram, não só nos looks e nas makes, mas, também, nas próprias performances. A minha preferida, de quem sou fã declarada, é a Aretha Sadick. Tive a honra de tê-la performando em um set meu na Capslock de fevereiro de 2019 com o DJ Hell. Que momento!

HM – Ativista e carregada de mensagens feministas, como você sente a evolução da cena nesse sentido?

Está evoluindo. Mas ainda tem chão, hein? Se tem uma mulher só no line-up, caso ela não seja headliner, as chances de ela fazer um warm-up ou o closing set são gigantescas. É muito louco, pois é que nem a letra de “Comida” dos Titãs “a gente quer inteiro e não pela metade”. Legal, temos nosso espaço, agora dá para nos colocar em melhores horários? Melhorar o cachê? Mulher, se não for headliner, ainda parece que é cota. A sensação que eu tenho é que não bastam os anos de experiência, não basta técnica de discotecagem precisa, não basta ter presença, repertório, visual.

_mg_1708editar_500
Foto: Gabriel Quintão

HM – Quão essencial você acha um artista se posicionar nos dias de hoje?

Totalmente essencial, aliás, se os artistas se calarem, quem vai falar? Eu não concordo com extremismo, existe esta máxima de que se você é contra um, logo, você é a favor do outro. Mas não são só esses dois polos. Não acho que ninguém tem que levantar uma bandeira que não lhe representa, mas tem que ser contra tudo aquilo que vai contra os direitos humanos, incita a violência, que faça apologia ao racismo, machismo, homofobia e todo o tipo de segregação possível.

HM – Conte um desafio muito grande que você enfrentou e uma conquista importante.

Existem muitos, mas escolhi falar de dois que se completam. Um dos maiores desafios que enfrentei foi aprender produção musical. Foi e ainda é extremamente difícil para mim. Exige muito estudo e, muitas vezes, achei que eu fosse incapaz.

A conquista foi conseguir produzir minhas próprias músicas. Mas não simplesmente fazer um som e sim encontrar a minha identidade, terminar uma track e ter orgulho dela, mostrar para todo mundo. Demorei quase sete anos para chegar nesse resultado e isso para mim é uma conquista gigantesca. Minha relação com a produção é um drama mexicano que, felizmente, em 2019 encontrou um final feliz. Eu acredito que muito desse desafio era porque eu não tinha o meu canto para produzir, um lugar onde eu me sentisse confortável para ficar por horas estudando e trabalhando. Faz um ano que comecei a montar meu home estúdio e hoje olho para ele e sinto muito orgulho do que construí, com ajuda de pessoas amadas.

Eu produzo uma música de maneira muito rápida, normalmente ela acontece de forma espontânea, a qualquer momento em qualquer lugar. Eu anoto a ideia, depois sento para fazer um briefing dela, para saber exatamente por onde começar e onde quero chegar.

Minhas músicas não têm um padrão, não sigo uma fórmula e não me prendo a uma vertente, cada criação é única e independente. Todas contam uma história e têm uma mensagem, mas o mais importante é que todas têm a minha identidade.

HM – Campinas se tornou um pólo da música eletrônica e muitos paulistanos hoje vão para lá curtir o movimento. Isso era incomum até poucos anos atrás. Como você vê a cena do interior hoje e como público e artista conseguem se beneficiar dela?

É incrível ver o crescimento da cena na região, imaginar que temos clubs como o Laroc, Ame e Caos, sem contar as festas itinerantes e open air. Ver nomes como Laurent Garnier, Carl Craig, Kolsch, Above n Beyond e muito mais aqui no quintal de casa mostra o quanto estamos crescendo e, com certeza, o maior beneficiado disso tudo é o público. A cena aqui ainda é muito provinciana, ou seja, é muito difícil uma festa underground virar sem nenhum grande nome envolvido. Não temos essa cultura e acaba que a maioria do público também frequenta outras festas, das mais comerciais até rodeios. Isso é algo bem típico de interior. Quanto aos artistas, não vejo tanta valorização dos artistas locais, mas isso é algo muito cultural também. É bem comum, falando até de forma global, que um artista seja reconhecido fora de sua cidade ou país, para depois conquistar seu valor na cena local. Eu ainda toco pouco na região, em 2019 foram duas vezes, mas toda vez que eu toco é épico, pois muitos amigos e alunos vão me assistir e isso transborda minha alma de energia boa.

HM – Você ganhou o Burn Residency 2019 e tem outras conquistas importantes como o 1º lugar no Desafio DJ Brasil e a residência na Carlos Capslock. Como é olhar para trás e sentir que o reconhecimento chegou?

Sou muito grata pelas minhas conquistas, mas é complexo falar que “o reconhecimento chegou”. Como artista, trabalho para oferecer e conquistar sempre mais. Essas conquistas me mostram o quanto eu sou capaz, que estou no caminho certo, mas tem muito mais pela frente. O ano de 2019 foi louco, pois tive momentos de agenda bombando, e outros de ficar quase dois meses sem gig. Então é importante não se ludibriar com os picos de euforia, ser artista independente é muito instável e precisamos estar preparados para as baixas também. Falar que o “reconhecimento chegou” é muito complexo, pois tem muita coisa que é fugaz. Estou terminando o ano me sentindo muito inspirada, acreditando ainda mais em meu potencial e com muito gás para conquistar ainda mais meu espaço na cena.

_mg_1565editar_500
Foto: Gabriel Quintão

HM – Como estão seus planos para 2020, o que vem pela frente em seus projetos?

Estou desde junho mergulhada em produção, começo 2020 com nove tracks prontas. Não faço ideia de quantas serão lançadas em 2020 nem por qual label. Se serão single ou EP. Mas, com certeza, vocês conhecerão muito mais esse meu lado. E a ideia é trabalhar muito bem cada lançamento e produzir ainda mais.

_mg_1494editar_500
Foto: Gabriel Quintão

HM – O que a Ella diria para DJ Rafaella?

Acredite mais em você e menos nos outros.

Fique por dentro