Saiba tudo o que rola por trás de um dos principais selos do mundo com Boye, curador do DKMNTL

Por Francisco Cornejo

Foto de abertura: Bibian Bigen

O Dekmantel, enquanto marca e fonte de excelência artística, é composto por diversas frentes, uma mais arrojada que a outra. Mas todas elas se intercomunicam e retroalimentam para gerar uma força gravitacional tão imensa que se faz sentir por todo o globo. E, sem dúvida alguma, estar nos controles de qualquer uma delas é uma tarefa das mais exigentes, pois exige tanta ousadia quanto responsabilidade para encontrar o equilíbrio necessário que mantém os rumos e o ritmo que sustentam sua identidade e estabelecem sua reputação.

No caso da frente fonográfica do bem-sucedido selo holandês, além desses pré-requisitos básicos, fazem-se necessárias uma certa dose de organização e uma boa visão para enfrentar tantos os desafios que se põem adiante quanto as expectativas que se colocam atrás de seus esforços. Contudo, com um timoneiro como Boye, um jovem experiente nas águas que em que uma empreitada músico-mercantil desse tipo precisa singrar, os temores são reduzidos tão drasticamente quanto os êxitos se acumulam.

Após conhecê-lo há alguns anos, quando então desempenhava um papel semelhante para a Rush Hour e depois reencontrá-lo como encarregado da programação do lendário Paradiso de Amsterdam, foi com enorme prazer que conversamos com mais calma sobre seu lugar dentro de um dos selos mais consistentes da última década. O papo é reto e extremamente enriquecedor para qualquer um, desde os aficionados por tudo que a plataforma oferece até aqueles que planejam entrar nesses mares sem correr riscos desnecessários.

HM – Agora o selo já comemora dez anos de existência com um catálogo bem sólido. Houve um rumo desde o início que o levou até onde se encontra hoje em dia ou foi mais uma questão de uma abordagem espontânea da curadoria?

O selo começou porque estávamos cercados de inúmeros artistas cuja música não estava sendo lançada por outros selos e sentimos que precisava ser ouvida. Destes lançamentos que se originavam no pool de artistas no qual estávamos imersos por conta dos eventos e festivais é que floresceu de forma constante. Foi predominantemente um crescimento orgânico através da nossa rede de artistas e amigos, a única diferença é que começamos a abordar ativamente novos artistas que estivessem além da nossa lista de contatos, mas com quem nos sentíssemos conectados artisticamente. Acredito que o selo também reflete a evolução de nosso gosto musical pessoal.

HM – Por falar nisso, qual o segredo por trás desse elemento curatorial? Como se lida com esse aspecto central para a identidade do selo no dia a dia e quem o faz diretamente?

Neste momento somos eu, Casper Tielrooij (um dos fundadores do Dekmantel) e Bert de Rooij que nos envolvemos de forma mais próxima com os assuntos comerciais e artísticos do selo. Cada um traz um certo ângulo. Casper e eu estamos mais propriamente envolvidos com o gerenciamento, enquanto o Bert se ocupa mais com as frentes de marketing e PR. Casper também é parte do Dekmantel Soundystem e toca bastante por aí, então ele possui um conhecimento privilegiado do que funciona na pista, assim como do que está rolando em termos de música dançante pelo mundo afora. O meu background é mais voltado ao segmento de eventos ao vivo no âmbito do crossover, tendo sido um promoter no Paradiso (a principal casa de shows da Holanda) por cinco anos antes de me juntar ao time. Já o Bert possui um vasto conhecimento sobre estilos musicais mais nichados da eletrônica. Reunindo os gostos dos três, o que acaba saindo é uma ampla paleta sonora que vai ser ainda mais refletida nos lançamentos a partir de 2019.

HM – O festival chega a influenciar essa dinâmica em algo ou vice-versa?

O festival sempre acaba sendo um escoadouro importante para o selo. Ele provê uma estrutura de exibição de nosso talento para um público muito maior do que apenas aquele que segue a gravadora. Claro que alguns deles são bem conhecidos entre uma audiência mais ampla, mas no que tange a outros menores como, por exemplo, Bruxas, é uma excelente maneira de estrear seu projeto ao vivo em frente a uma multidão cheia de fãs em potencial. Além do novo roster, sempre depositamos muita confiança em cada artista, assim sempre procuramos lhes dar lugares cobiçados em nosso próprios festivais. Por outro lado, ele também sempre contém um grande número de talentos emergentes. Conferi-los, ouvir seu som e forjar uma relação com eles em nosso próprio evento às vezes pode ser fundamental para o futuro deles como integrantes do catálogo.

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HM – E quanto ao talento propriamente dito? Certamente esse é um dos pontos mais fortes da marca como um todo, sendo cultivado em todas as frentes. Qual o conceito por trás, além da concepção tão celebremente holandesa de coletivos culturais como “famílias”?

Sempre procuramos colaborar com artistas a longo prazo e dar-lhes a liberdade criativa para lançar o tipo de música que estão produzindo naquele momento. Se você nunca se sentir a fim de lançar um álbum, então não o faça. Em média, vão lançar um punhado de singles e então progredir em direção a um álbum, outros sequer chegarão a esse estágio por não serem o tipo de artista que lança algo nesse formato. Eu pessoalmente acho esse conceito sobrevalorizado no que se refere a conferir credibilidade artística a um produtor como alguém profícuo. Por vezes, um pode fazer quatro desses e nem sente qualquer mudança em sua popularidade, mas assim que aparece com um grande 12″ tudo deslancha. Acredito que uma relação longeva com seus talentos sempre se baseia num acordo mútuo acerca da trajetória de sua carreira no selo. Encontre aquele planejamento com o qual ele fique feliz, mas também estimule-a/o a extrair o máximo dele.

Além de organizarmos várias noites do selo nas quais tentamos sempre colocar nossas aquisições mais recentes no time ao lado de outros mais estabelecidos, fazer turnês (como esta que percorre o Brasil agora) em que trazemos nomes que lançarão um álbum no futuro. Estas noites e turnês também criam uma atmosfera favorável para conhecê-los melhor ao curtir um pouco com eles. Estreitar laços e formar amizades, que irão resultar num ambiente familiar. Para nós, essa ligação com nossos artistas tem sido sempre muito importante. Nenhum de nós entrou nessa por dinheiro ou algo do gênero, mas sim pelo amor pela música e para termos gente de pensamentos afins acerca desse amor ao nosso redor. É uma imensa honra acordar toda manhã e fazer esse tipo de trabalho com seus amigos de hoje e de amanhã.

HM – Que tal agora mergulharmos em tópicos mais técnicos? Quem cuida da distribuição do selo e quais são os maiores empecilhos que uma empreitada como esta enfrenta hoje em dia?

Nós trabalhamos primordialmente com duas distribuidoras. A Rush Hour cuida da parte de vinil e a EPM lida com a parte digital, e estamos muito felizes com ambas. Acho que o principal `problema` com a distribuição física é levar seu produto a cada país existente. Em alguns países, como Brasil e Rússia, é difícil levar os discos até as lojas por conta da insana taxação sobre itens importados. Por um lado, é algo estranho, pois o `produto` é a música, a qual é disponibilizada livremente sem esses impostos no formato digital, mas já que é prensada num objeto tangível, leis distintas se aplicam. É uma pena de verdade, porque sempre que visitamos os países que sofrem com esses tributos os fãs vêm até nós trazendo essas questões.

Quanto à distribuição digital, o streaming se torna cada vez mais importante. Assim, plataformas como Spotify, Apple Music e, em alguns países, Deezer, estão gerando renda crescente. Pessoas que não são tão obcecadas com vinil estão substituindo a retenção proprietária de uma música (seja como um arquivo ou um disco) pela acessibilidade de uma biblioteca na nuvem. Não importa se você possui uma cópia daquela faixa, contanto que possa tocá-la quando quiser. Não é um empecilho em si, apenas um modo diferente de distribuir o material e modificar sua estratégia de marketing de varejo.

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HM – Quais são os principais mercados para o tipo de música que o Dekmantel se dedica a promover?

Tradicionalmente nossa música esteve disponível em vinil nas lojas de discos que serviam especialmente a DJs e colecionadores. O mesmo vale para as plataformas de download digitais. No decorrer dos anos isso se transformou de maneira cada vez mais profunda. A sonoridade do selo também partiu de um tipo de música mais voltada aos clubs em direção a uma variedade maior de propostas. Atualmente, o selo encarna a diversidade encontrada em nossos eventos. Desse modo, Palms Trax e Fatima Yamaha podem entregar sucessos de pista,  enquanto Peaking Lights explora um território intersticial entre o pop, o inde e a música eletrônica Bruxas cria Disco tropical de andamento mediano que te leva a uma pool party anos oitenta, ao mesmo tempo em que Lena Willikens e Marcel Dettmann te carregam numa jornada através de algo mais contemporâneo ou sons mais clássicos inspirados nas diversas waves históricas. Tentamos agradar aos amantes da música em geral que estão enraizados na eletrônica, sejam DJs, colecionadores, fãs dos artistas ou apenas pessoas que buscam música boa e inspiradora.

HM – É inegável que a atual abundância de formatos de fruição musical é algo que tanto uma vasta gama de novos recursos assim como uma porção de novos desafios. Quais são os principais fatores que surgem quando vocês decidem adotar uma nova plataforma?

É sempre bom lembrar os benefícios envolvidos em adotar uma nova plataforma. Qual a qualidade da sua distribuição (em termos de velocidade, facilidade de uso e formato)? Em quem eles concentram sua atenção (será que este grupo de pessoas não está representado nela)? Quais são os custos envolvidos com ela (quais são as vantagens em contrapartida ao investimento)? Como mencionei há pouco, alguns territórios são dificílimos de atingir pelas vias físicas de distribuição e precisam de uma alternativa decente. Em termos de streaming, Spotify e Apple Music não são necessariamente as maiores disponíveis. Em alguns lugares como a França, o Deezer possui uma grande fatia do mercado. É sempre bom monitorar os movimentos em países nos quais você possui bastante seguidores e decidir (junto a seu distribuidor) quais delas trazer para mais perto, em quais concentrar esforços e de quais se livrar. Se há algo que mudou no decorrer dos anos é que a maior parte das vendas virá de uma fonte específica (vendas de discos, por exemplo). Então você precisa investir bastante tempo no refinamento de cada uma delas, como downloads digitais, serviços de streaming, vendas físicas, vendas diretas via sua loja própria ou no Bandcamp, licenciamento, publicação e daí por diante. Todas estas requerem várias plataformas em diferentes países.

HM – Agora, falando para a as futuras gerações de valentes donos de selo, se puder compartilhar algumas palavras de sabedoria, estou certo de que seriam muito bem recebidas.

Se você quer fundar um selo e prensar vinil, então deve ouvir seus parceiros! O que quer dizer que vai ter de pedir conselhos ao seu distribuidor. Você pode se empolgar em lançar algo por conta própria e pensar que o mundo todo vai querer, mas isso também pode levá-lo a ficar com 100 caixas de estoque de vinil no seu quarto. Eles podem se tornar excelentes descansos de copo ou jogos americanos de mesa, mas também serão um desperdício de matéria-prima que afeta o meio-ambiente e custam uma bica.

Fora isso, aja com paixão no que se refere ao material musical que você promove. Se você não curte de verdade, mas acha que pode vender muito bem, então melhor não fazer, pois não vai ser convincente. As melhores gravadores por aí são tocadas por gente que é genuinamente vidrada em tudo que faz o selo, do catálogo ao time. O amor pelo som é sentido através de cada lançamento que é nutrido e é exatamente isso que inspira as pessoas a ouvi-lo.

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