Dekmantel se mantém impecável na segunda edição paulistana

Por Marcelo Godoy, Gabriela Loschi e Alexandre Albini
Foto de capa Alexandre Albini

“Feliz por ver um evento desse acontecendo aqui em São Paulo! Com essa variedade – e qualidade – musical, pluralidade de um público tão preparado para receber e se entregar a tantas sensações.”

Essa não é a fala de apenas uma pessoa. É um sentimento que tomou conta da grande maioria do público. Nos dias 3 e 4 de março, São Paulo não recebeu apenas um festival. A catarse coletiva, a histeria, o êxtase geral e a onda de boas vibrações que deixou quase todo mundo embasbacado, não se deu somente por line ups estelares. Aquilo que vivemos foi uma verdadeira egrégora energética.

O lado racional nos faz buscar por pontos-chave do que fez o Dekmantel Festival manter-se tão especial em sua segunda edição na capital paulista: a música, a estrutura, os detalhes, os artistas, os locais, as facilidades de acesso, os valores dos bares, a diversidade social, as experimentações… um pouco de tudo! Mas depois de vivenciar cada segundo desses dois dias mágicos – entre dia e noite –, nossa equipe acredita que destacar um fator é necessário: a ATMOSFERA.

atmosphere_2__please_credit_ariel_martini_500Foto Ariel Martini

Não só para nós, mas a energia que contagiou o antigo Playcenter e o Sambódromo do Anhembi por um final de semana inteiro, comandou os corpos e os sorrisos de mais de seis mil pessoas, que vieram de todo o Brasil para viver ali algo que não se vive tão comumente em nosso país.

“Ao apresentar um espectro sonoro tão vasto e colocar num mesmo espaço de coexistência tanta gente diferente, com gostos diferentes e propiciar uma troca, a VIBE foi o que mais me fez sentir feliz em estar ali”, Marcelo Godoy. 

Ano passado ao chegar pela primeira vez ao Brasil, o Dekmantel gerou um alvoroço enorme, pois trazia junto com a marca consagrada holandesa um conglomerado de artistas relevantes, que compuseram um dos line ups mais arriscados e originais que o Brasil já viu, junto com a característica organização impecável de Amsterdam. E foi aquilo o que todo mundo esperava e mais um pouco.

Agora em 2018, com a pressão de entregar novamente um festival que entrasse para a história tupiniquim – sem exageros – a organização (capitaneada pela Gop Tun) se deparou com um grande empecilho, o de não poder realizar novamente no Jockey Club. Empecilho este que se transformou em uma grande alegria para quem tem no Playcenter um dos símbolos máximos da infância. E para todos os que puderam presenciar o aproveitamento de cada espaço do antigo parque de diversões para a construção de pistas de dança aconchegantes e altamente vibratórias, com estruturas montadas em meio a árvores e plantas lindíssimas que refletiam colorido e felicidade nas iluminações. Acertaram em cheio no espaço diurno!

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“Não consegui ir na edição do ano passado pois não estava no Brasil. Mas lembro que sofri, busquei vôos, queria fazer parte da estreia do Dekmantel brasileiro. Acompanhei todo o sucesso de longe (fiz até uma profunda entrevista com o Jeff Mills, um dos headliners do ano passado, leia aqui) e esse ano eu pude comprovar: Que festival! Para além da curadoria cuidadosa e representativa, que este ano compôs o line tentando respeitar um número mais honesto entre homens e mulheres – e provando que sim, para além das especificidades de cada um, existe uma penca de artista talentosíssima que muitas vezes fica subestimada por curadorias digamos preguiçosas, que definitivamente não é o caso do Dekmantel. Tudo isso embalado pelo respeito aos artistas nacionais, e por pistas divertidíssimas, tanto de dia quanto a noite, cada uma com sua proposta. No Anhembi não havia a estrutura de um festival em si, a parte do soundsystem, mas o after foi espetacular, criaram uma atmosfera underground tão poderosa que me fez chorar, que aquilo estava acontecendo no Brasil…” Gabriela Loschi.

Esta edição abriu ainda mais espaço para talentos locais. Foi muito bonito ver o suporte dos fãs, das pessoas curiosas e abertas a conhecer o diferente – ou a dançar o consagrado – dos amigos unidos, mas principalmente da fomentação da cultura e da arte locais. O público estava antenado e super afim de ver nos grandes palcos os artistas que há tempos trabalham no Brasil, ao lado de grandes nomes mundiais que estão causando nos clubs pelo mundo. É a coroação de anos de trabalho de muitos artistas brasileiros; é o carimbo no passaporte mundial.

Quando dissemos que o que foi vivido naquele fim de semana não se vive tão comumente no Brasil, estamos falando na categoria de quem participa da cena paulistana há anos e também mora ou já morou fora do país. Na nossa equipe fomos em três pessoas, Alexandre Albini, que vive em Curitiba, mas que já teve a oportunidade de ir a diversos eventos no Brasil e Europa; Gabriela Loschi, que vive em São Paulo e Berlim (e já morou alguns anos em Nova York); e Marcelo Godoy, paulistano que vive em Berlim há sete anos. Todos frequentadores assíduos dos melhores clubs, festivais e festas underground ao redor do mundo e que estão até hoje em êxtase pelo Dekmantel SP que passou…

Confira o relato pessoal de Marcelo Godoy:

De um modo opinativo bem pessoal, o que vi nesse fim de semana em São Paulo se equiparou a qualquer festival europeu. E nisso, o público está de parabéns também. De vibrações leves a estruturas impecáveis. De organização dos line-ups, construção de momentos e detalhes que deixaram a festa muito mais gostosa (distribuição de capa de chuva por exemplo). E os after-parties….

Também, foi muito interessante encontrar pessoas de festas que normalmente vejo em clubs como Berghain ou outros em Berlim (vi uma caravana bem grande!). Isso é um sinal claro de que o underground brasileiro vem firmando seu lugar no circuito mundial de festas. E a diversidade de ideias e pessoas tem papel fundamental nisso. Nunca havia me sentido tão à vontade em um evento no Brasil – desde sempre!

Não vou entrar em comparações, e está difícil não soar apaixonado depois de vivenciar um evento tão completo e abrangente na minha cidade natal. O país tem eventos de altíssima qualidade há algum tempo, e já não vivo aqui há sete anos. Mas o que experimentei agora, foi realmente mágico.

Acho que a palavra que mais se destaca na minha mente quando penso no assunto é: inclusão. Quem já esteve em Amsterdam, já sentiu como a cabeça aberta da galera é nas festas. A população não se importa com nada referente ao “o quê” você é, e sim “quem” você é. Negros, brancos, gays, trans, héteros, mulheres, homens, gente do mundo inteiro.

atmosphere_4__please_credit_eduardo_magalhes_500Foto Eduardo Magalhães

Nos últimos anos, acredito que pela repressão e dificuldades que o Brasil enfrenta, essa situação vem melhorado – principalmente na população que frequenta e consome música eletrônica, principalmente underground. As festas começaram a desenvolver processos de safe-spaces e inclusão social de muitas “minorias”. Pela transgressão de normas e quebras de tabus, uma esfera social contempla melhor as pessoas do jeito que elas são.

E isso cria VIBE. Quando você dança com a pessoa ao seu lado, sem se importar com a aparência dela, e sim somente por querer ter um tempo bom juntos: para DANÇAR. Isso sim é terapia social e coletiva. Algo que nos lembra que somos parte de um ecossistema único. Um bando de gente que por sorte do acaso em bilhões de anos de evolução tem um cérebro desenvolvido e um polegar opositor. Na dança somos únicos, nossos instintos mais íntimos são colocados à prova. É muito bom poder compartilhar momentos de paz a integração. E é muito bonito poder ver que a música e a arte propiciam o pano de fundo para esses acontecimentos. Acredito fortemente que festas são ferramentas de transformações sociais.

Dito isso, gostaria de parabenizar o time de performers e artistas que deixaram o festival ainda mais colorido: Gabriella Garcia, Euvira, Valentina Luz, Alma Negrot, Aretha Sadick, Alex Honda, Roberta Uiop. Eu sei que vocês são trabalhadores da cultura há tempos e são agentes transformadores. Parabéns também ao pessoal da 28.room pelo trabalho de iluminação e criação de ambientes. E claro, a Gop Tun, além de todo o staff e time de trabalhadores que fizeram parte desse momento artístico coletivo. As festas não são só música e artistas famosos, e é importante sabermos valorizar todos os aspectos que nos trazem uma linda experiência multissensorial.

ENFIM, A MÚSICA!

Vejo como uma das poucas diferenças entre Brasil e Europa que: aqui temos um grande país continental. Lá, cada país é como se fosse um Estado aqui. Então, o acesso aos artistas internacionais se dá de forma mais rápida e contínua por lá (além das dificuldades, custos e trâmites para trazê-los ao Brasil).

Entendo que muita gente gostaria de poder moldar os horários de uma forma em que pudessem assistir mais de seus artistas favoritos, mas é impossível agradar a todos. Eu já tive muitas oportunidades de ver a grande maioria do line-up, então o jeito que eu curti o festival, foi um pouco diferente: estava interessado na experiência coletiva, mesmo que a música em si tenha me puxado e tocado muitas vezes no festival; de arrepiar o corpo! Assim, pude transitar entre muitas atrações, conhecer artistas que nunca havia visto antes; “pulando de galho em galho” … Vinte minutos aqui, meia hora ali, encontrava amigos e conhecidos que não via há muito tempo em todos os palcos. Foi demais!

Cheguei no festival no sábado, por volta das três e meia da tarde. Não consegui ver o amigo Nascii. No palco principal Davis tocava um techno groovado, com bpm mais baixo, muito interessante. Dali parti para explorar/ reconhecer a área. Encontrei o palco Gop Tun onde vi um pouco de TYV. Na pistinha do Na Manteiga Rádio, Rotação Brasil dava o tom. No caminho ao UFO stage, parei um pouco também para ver Bufiman na pista Selectors. Ali do lado, passando pela ponte (quem foi nas “Noites do Terror do Playcenter”, certamente se lembra que ali só se passava correndo… Infância divertida, hoje vamos pra rave!) chegava-se ao UFO, que neste ano foi o segundo maior palco. Vi o final do set do Tessuto e o começo da Cashu, ambos bem uplifting. Techno gostoso. Fui ao main stage encontrar uns amigos, e estava rolando Peggy Gou. A coreana é super talentosa. Tocou alguns clássicos e fechou com “Transition” do Underground Resistance.

Outro destaque desse momento, foi o set cabeçudasso/ diferentão/ pra frentex da Lena Willikens & Ikvovic. Os residentes do Salon des Amateurs em Düsseldorf mostraram um derretimento cerebral que entortou a pista por muito tempo. Fiquei com muita vontade de conhecer esse club alemão. Voltei ao palco principal e vi a apresentação do Midland. Que maravilha! Passeou por diversos estilos, do jeito que eu curto. Um flow bem massa e com o sol se pondo; foi uma das apresentações que fiquei por mais tempo. Um pulo no Na Manteiga encontrar outra amiga, ouvir um pedacinho do Thiago Guiselini, sempre um som muito classudo. Kobosil eu pulei, pois já vi muitas vezes, e o mesmo para o Mano Le Tough e Modeselektor.

Curti bastante também o Randomer que nunca havia visto e vi um pouco do set do Ney Faustini também. Até agora, só sonzeira em todos os palcos. Voltei para o UFO para uma das apresentações mais aguardadas do meu passeio: DJ Stingray. O mesmo que aconteceu com o Midland: já havia visto eles algumas vezes em Berlim, mas não me surpreendido tanto. Aqui, eles arrebentaram! Não sei se é a vibe, o público, o local, o calor… Que apresentações fantásticas! Stingray teve uma seleção de electro absurda, “malvada”, baterias que te espancavam – e um bpm bem alto para a média. Muito foda ver mestres como Renato Cohen e Benjamin Ferreira se jogando na pista. A música atravessa gerações e isso é sensacional.

Assim foi o primeiro dia de festividades. Bora pro after. Chegando no Sambódromo do Anhembi, que local bonito – a arquitetura quase brutal, as linhas de concreto… com a iluminação na medida; lindo! A trilha logo no começo do palco principal foi aberta por Lust Attraction, de Medellín. Bem legal o som dele. Também vi o Anthony Naples, classe o som. Voltei pra ver o Juju & Jordash – infelizmente o Juju (Gal) teve de se apresentar solo, mas mesmo assim fez bonito. Passeei pelo sambódromo, vi mais um pouco de Lena Willikens, Cinnaman, e um pedaço de RHR, mas gostaria de ter visto mais do set dele, pois não havia visto antes. Dois outros grandes destaques da programação noturna que queria muito ver: Teto Preto e DJ Fett Burger.

 

Sou fã de Teto Preto há anos, e fazia três que não os via: que evolução sonora! A unidade da banda, as transições e a musicalidade em si. Muito mais jazzy… amei o som! Fett Burger – eu tenho vários discos dele, e mesmo vivendo na mesma cidade, nunca tinha o visto. Muito interessante o som dele também. Vi um pedacinho de The Hacker presents Amato live, um electro/ techno com pegada diferente da de Detroit. E na “saideira” fiquei pingando entre o set do mestre brazuca Magal e o ping-pong/ baguncinha/ b2b entre Palms Trax, Courtesy e Mano Le Tough. No dia seguinte, conversei com o Midland e ele me disse que estava um pouco doente e não aguentou ir pro after. De qualquer forma, festão! Saímos de lá as sete da manhã, acabados, porém felizes.

tessuto__please_credit_gabriel_quinto_500_01Tessuto. Foto Gabriel Quintão

Dormidinha básica, banho tomado… pé na estrada de novo. Cheguei lá e me alimentei: comi um strogonoff vegano num dos trailers – bom demais! Inclusive é bom lembrar, somos adultos e responsáveis: “festar” é ótimo, e é importante que saibamos fazer isso conscientemente. Fomos informados que no ano passado não houve nenhuma ocorrência grave e nenhuma saída de ambulância. Parabéns ao público brasileiro. Comam, bebam bastante água e se divirtam!

Nisso já estava rolando o set do Marcio Vermelho. Muita classe sonora “rocking the box” – mesmo com a chuva que caiu, a pista já estava cheia e a galera pulando. Queria ter chegado mais cedo pra assistir ao mestre e caríssimo colega Tahira, e o brother Gui Scott. Mas descansar era preciso para aguentar o segundo dia (e noite). Do Vermelho, parti para o show do Azymuth com DJ Nuts. Há muito tempo queria ver esses caras; lendas vivas da música brasileira. Muita emoção em forma de ondas sonoras, uma energia incrível! Dali começou o meu “ping-pong”: um pouco de Mall Grab, para ouvir uns UK Garage, Old School Rave. Aí fui para Dekmantel Soundsystem, que têm um som que é muito a cara deles. De lá para o Selvagem, que também é uma brisa delícia – com faixas que nunca tinha ouvido antes.

Vi também um pouco de Floating Points no Na Manteiga, sempre classe. E, voltei ao UFO, ver o final da Courtesy com seu techno super fresh e um pedaço do live do Zopelar, que está (há muito tempo) um absurdo. Metade do Zope, metade do Four Tet… Que set lindo! Construções interessantíssimas, balanço entre peso, texturas, timbres diferentes, subia e descia com um fluxo que poucos conseguem fazer. Gostaria ter visto o show d’Os Mulheres Negras, mas me perdi para lá e para cá. Outro destaque desta edição foi a Jayda G. Que vibe! Só de ver/ sentir a energia dela tocando você já quer dançar. Som funkeado, super groovy e ainda uplifting. A pista Selectors estava bombando, lotada. Vi um pedaço de Marcel Dettmann e de lá fui ver Anthony Parasole – que pegada! Acompanho o som dele há anos, e ele sempre entrega. Curti bastante o set dele no UFO, deu “saudade” daquele club de Berlim.

jayda_g__please_credit_gabriel_quinto_500Jayda G. Foto Gabriel Quintão

Assim encerram-se minhas “perambuladas” pela programação diurna. Haviam boatos que talvez Stingray apareceria no after, dependendo se seu voo pudesse ser trocado – no final, não rolou. Mas sem problemas. Grandes expectativas, pois já estavam confirmados Four Tet b2b Floating Points, Marcel Dettmann, Nina Kraviz e Kobosil. A pira do festival era essa: foi uma energia tão boa que os artistas estavam pedindo mais!

De volta ao Sambódromo, o after-party estava em chamas! Chegando lá, a chilena Valesuchi mandava um som maravilhoso. Na pistinha, esquentando as carrapetas, estava rolando um b2b que acredito ser Interstellar Funk com John Gómez e Mall Grab, mas nem a produção soube me informar o que estava acontecendo! Nisso Four Tet e Floatig Points estavam se preparando para entrar.

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No main stage, algo inédito se formava: Marcel Dettmann e Nina Kraviz – que já haviam feito uma bagunça no club Caos, em Campinas, na sexta feira, e no Warung, sábado – convidaram Kobosil para participar do b2b. Desceram a lenha: rolou bastante industrial e minimal techno – BPMs altos e energia então, nem se fala! A pista composta por uma galera internacional, junto aos locais de vários núcleos e festas. Foi muito lindo de ver tanta gente diferente dançando junto. Na pistinha, Four Tet e Floating Points transmutavam a galera numa viagem cósmica. Passeando por diversos gêneros, e numa sintonia de amigos de longa data.

Depois Gui Scott e Young Marco tocaram bastante groove e sons baleáricos mesclados com house. E Augusto Olivani, o Trepanado do Selvagem tocou b2b com o Casper Tielrooij, do Dekmantel Soundystem – rolou até Fernanda Abreu, fazendo a galera remexer num swing maroto. A hora de acabar foi chegando, e na pista principal Anthony Parasole tomou conta e mostrou como os closings são feitos do seu modo. Danny Daze se juntou a ele e um grande final foi feito, do jeito que um festival tão especial como esse merecia: deixando todos pingando de suor, fazendo todos se contorcerem.

Quando o som parou, ficamos todos órfãos, querendo mais! Mas foi lindo, e uma festa acabar as 7:30 da manhã de uma segunda-feira no Brasil, não é tão comum. Saí de lá com um sorriso enorme no rosto, com memórias lindas de dançar debaixo do sol e da lua, de pegar uma chuvinha tropical e me “esbaldar” que nem criança numa festa com tanta gente bonita, legal, interessante e de corações maravilhosos. Vida longa ao Dekmantel São Paulo e a todo o público de festas, compostos por organizadores, agitadores, artistas de todos os âmbitos e trabalhadores da cultura! 

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