Como a Soul Set e seu fundador Thiago Guiselini transformaram os domingos paulistas com House Music

Por: Chico Cornejo

Mesmo se considerarmos um universo artístico tão pouco estruturado quanto o que abriga os DJs, algumas máximas ainda se sustentam com regularidade e constância suficiente para se tornarem regras. E dentre as poucas que podemos escolher aqui, uma se aplica quase invariavelmente: os melhores DJs nos surpreendem sem fazer muito esforço. Mas é curioso notar que, ainda que este seja o caso de Thiago Guiselini nas cabines, seus feitos fora delas também revelam mais façanhas do que a glosa histórica da noite paulistana nos permite saber. Indo de projetos pioneiros que ajudaram a emoldurar o cenário de festas da cidade de São Paulo a propostas ousadas de curadoria e produção, seus esforços sempre foram pautados por uma inquebrantável paixão pelo ato de congregar um público tão apaixonado quanto ele na celebração da música.

Este é o princípio que tornou a Soul.Set um dos baluartes da House Music na cidade e a sustentou nessa posição por seis anos, no decorrer dos quais muitos dos ídolos daqueles que partilhavam sua paixão pelo gênero vieram a conhecer pessoalmente os devotos na pista. Os seminais Ron Trent, Joel Claussel e Darshan Jesrani (Metro Area), o mestre dos edits Kon, o monumental KL Jay, o colossal Marky, o eclético Rainer Truby… cada um destes já teve seu momento nas cabines da Soul.Set e ajudou a escrever na pista de dança uma história vibrante que o próprio Thiago nos ajuda a esmiuçar nesta entrevista:

 

 

HOUSE MAG – Imagino que haja um DJ antes da Soul.Set, certo? Como foi encontrar essa vocação?

THIAGO GUISELINI – Acho que o meu percurso foi bem atípico, pois eu comecei a me envolver com música através da capoeira, talvez seja por isso que sempre tenha mostrado uma preferência por ritmos de origem africana ou, pelo menos, firmemente apoiados na percussão, mesmo porque eu tocava berimbau muito bem. Daí a minha entrada na pista ter sido através do break. Eu amava aqueles movimentos! A minha primeira apresentação de capoeira foi em um club, aos dez anos de idade, então me apaixonei por aquela atmosfera.

A partir desse primeiro contato tudo foi meio precoce para mim. Minha primeira balada noturna foi aos 13, comecei a tocar no mixer de um amigo, já que até aí eu só brincava no meu Discman; fiz curso de DJ na Fieldzz do Iraí Campos aos 15 e pegava um busão de São Caetano do Sul até a Berrini. A grande virada foi me tornar um dos DJs da Ocean Drive aos sábados, casa da qual eu era promoter e me residente tornei devido à indicação de uma menina com quem tinha uma relação naquela época e que me recomendou aos proprietários. Isso tudo era no final dos 90 para o começo dos 2000. E eis que me inscrevi em um campeonato nesse club no qual um dos jurados era o Guedes e venci, minha residência foi firmada de vez.

Até 2007 toquei em inúmeros lugares, tantos que é até difícil lembrar: um festival chamado Amnesia Beats aos 17 anos; clubs mais requintados de São Paulo que apostavam na House naqueles tempos como a Dolce; teve também a saudosa Sunday Away com o Vermelho e o Corelli no Tostex; teve Urbano, Hot Hot, Ludra, Pulp, In The House… cheguei até a criar a Sundaze com o Mauricio Gatto, projeto do qual saí por conflito com a nova festa que estava fazendo naquele momento, a Soul.Set. Em 2014 tomei uma decisão bem séria para minha vida que foi a de largar meu day job no qual já estava a 13 anos e me dedicar integralmente à música.

 

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HM – Essa é a sua cria mais conhecida. Foi aqui que se deu sua transição para uma atuação muito mais ampla na concepção e execução de uma festa?

TG – Sim, neste caso eu atuei em muito mais frentes, ainda que não fosse algo exatamente novo para mim, foi o projeto que concebi desde o início e que desenvolvo até hoje. A primeira teve meio que um êxito inesperado. Era meio inedito fazer festas vespertinas aos domingos e tudo foi feito de modo um tanto espontâneo, fruto daquele impulso de fazer algo em que você realmente acredita, sendo a primeira festa na qual eu me vi tocando apenas o que gostava, dando ao público uma amostra do meu gosto pessoal, que tinha sido cultivado no decorrer desses anos.

O local do evento foi o The View, a cobertura do hotel Transamérica Prime da Alameda Santos e atingimos um público de 340 pessoas. Nem esperávamos chegar a essa quantidade de pessoas na nossa tentativa inicial. Depois fizemos duas edições na Casa da Fazenda do Morumbi e algumas outras no Chakras, um bar/club ali na Melo Alves, também fizemos algumas ali no Espaço do Bosque na Lapa, na área externa da Eazy, no terraço do Lions, no estádio do Morumbi, nos Trilhos, no Banana’s Beach Club na Barra do Sahy e alguns outros até chegar a este atual, no Nacional Atlético Clube na Barra Funda.

O que procuramos fazer sempre foi apostar na fidelidade e no sentimento de pertença que sempre conseguimos fazer aflorar entre os Soulsetters através desses elementos distintivos da festa. Mas isso não nos impediu de arriscarmos coisas novas como quando pusemos uma urna na porta para que as pessoas depositassem uma contribuição voluntária, sem valor predeterminado. Evidentemente isso não vingou por razões financeiras, mas valeu a tentativa.

 

HM – Essa itinerância sempre foi parte do projeto?

TG – Inicialmente não, tivemos vários lugares com os quais adquirimos uma enorme afinidade e, se dependesse apenas da nossa vontade, seriam permanentes, como o Chakras que acabou fechando. Mas o problema que sempre dificulta a realização de eventos como o nosso é o entorno, as reclamações da vizinhança e a indisposição com os proprietários que se segue. A mudança de local se torna uma necessidade.

Mas não me entenda mal, isso também se deu por nossa vontade. O percurso pela cidade era um componente que buscávamos para dar ao público algo para ansear, um toque de originalidade e atração adicional, já que o essencial sempre foi a música e ela sempre esteve garantida. Esse é um aspecto que fez da Soul Set o que ela é até hoje: a lealdade das pessoas que querem dançar a música que a festa se esforça em promover. E foi exatamente esse o chamariz para que nos acompanhassem em nossas aventuras cidade adentro e sempre foi algo reconfortante ver a confiança de que estávamos investidos, a ponto da distância nunca ter se posto como um impedimento, e sim como um desafio.

 

HM – Isso também ajudou a arriscar mais na elaboração do elenco de convidados?

TG – Claro. A partir do momento em que tínhamos um público fiel, pudemos apostar em DJs internacionais que admirávamos. O primeiro foi o JP da Vinyl Junkies e então sempre procuramos surpreender nossos seguidores, que sabíamos ser amantes do mesmo estilo de música que nós, com DJs respeitados no âmbito dessa musicalidade. Veja que nunca foi uma questão unicamente de agregar números aos nosso resultados e sim de fornecer uma experiência especial para nossos dançarinos.

No final das contas, o que me motivou foi poder ver esses caras que me inspiraram em ação, num ambiente criado por nós aqui no Brasil e ainda poder tocar com eles. Acho que esse é um desenvolvimento natural de qualquer projeto que é criado por DJs e produtores que são aficionados pela música que tocam. E não podemos esquecer dos brasileiros que procuramos constantemente colocar em evidência, gente como o Ney Faustini, Felipe Venâncio, Rafa Moraes, Marky, KL Jay, que compartilham dessa nossa visão e, por isso mesmo, fizeram sets aclamados pela nossa pista.

 

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HM – Você tem alguns favoritos pessoais entre esses? DJs que foram além da já grande expectativa que circundava sua vinda? O meu foi o Andrés, mesmo por tudo que ele representa para a House e o Hip Hop e entregou  exatamente isso ali…

TG – O JP do Vinyl Junkies, por ter sido o primeiro gringo a se apresentar na festa tem um lugar especial nas minhas recordações, além de ter sido fenomenal. O set do KL Jay foi bem especial, assim como o do Marky. O primeiro grande nome que trouxemos para o aniversário de dois anos da Soul Set foi o Joel Claussel, e foi realmente algo singular vê-lo tocar, o Marky é sempre um DJ que supera qualquer expectativa, mesmo as de alguém como eu que adoro o que ele faz; o Kon, cujas músicas e edits eu sempre amei, mas como DJ me surpreendeu…

 

HM – E agora tivemos o Rainer Trüby para coroar o aniversário de seis anos que veio após um relativo hiato de edições. Isso foi uma decisão consciente ou foi algo definido por outras frentes da sua carreira?

TG – Esse intervalo rolou por conta da minha mudança temporária para a Austrália com minha mulher. Fui para lá com o objetivo de estudar e aprimorar meu domínio da língua inglesa e acabei quase criando uma nova vida lá… na verdade, eu literalmente fiz isso, já que voltei como um futuro pai. De todo modo, me adaptar foi complicado, doloroso até, mesmo porque é muito longe, tem a distância física, emocional, de tudo que você deixa para trás.

Então foi difícil, principalmente porque cheguei e não conhecia ninguém, estava meio que isolado, sem falar inglês. Mas aí toquei  na minha primeira festa e agradei ao pessoal. O resultado foram 15 gigs em sete meses. Teve um projeto que começou como um afterhours e se tornou uma festa de domingo com duas edições: day and night. Toquei no club S.A.S.H. e no Slyfox… acho que a música foi o que criou pontes e estabeleceu minha forma de comunicação ali. E isso digo sem medo de apelar para um clichê, porque foi o que de fato ocorreu.

 

HM – E quanto ao futuro, o que ele reserva para você e quem curte a Soul Set, até onde dá para vislumbrar?

TG – Acho que o mais imediato mesmo se prende à paternidade, né? Meu filho é a prioridade neste instante, mas assim que puder, quando meu filho estiver mais velho, vou para Lisboa para cuidar do meu novo projeto: uma loja de discos chamada “Amor”. Ela é uma empreitada que estou levando a cabo com amigos queridos que compartilham da mesma paixão e visão que eu em relação à nossa música. A especialidade vai ser música brasileira e também vamos ter um espaço para rolar algumas festas menores, um bar e café. Um lugar de confraternização e comunhão para todos aqueles que compartilham dos nossos interesses: garimpagem de discos e uma farrinha eventual.

Apesar disso, acho que todo mundo aqui no Brasil que curte a Soul Set e meu trabalho pode ficar sossegado, eu vou voltar e a festa vai continuar e ainda tenho mais outros dois projetos rolando ainda em 2017: a Trafe, que vai ser sediada num clube novo localizado no Centro de São Paulo e a Tônica na Casa da Luz. Eu jamais deixaria esse público fantástico para trás e muito menos tudo que construímos e ainda vamos criar juntos.

 

 

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