Zopelar: Multifacetado


Por: Chico Cornejo
Fotos: Marcelo Elídio
 

Pedro Zopelar é uma estrela das mais fulgurantes numa constelação que apenas agora vemos tomar forma e delinear uma nova geração da eletrônica brasileira, e 2017 foi provavelmente um dos anos mais intensos de sua carreira. Um ano em que seu brilho se matizou e potencializou como até aqui não tínhamos visto: se apresentou em dois dos festivais que se tornaram os principais episódios do calendário da música eletrônica underground do Brasil; seu selo em parceria com Davis alçou vôos ainda mais altos; cravou uma gig no local que é tido como um templo da música eletrônica mundial e ainda sobrou algum tempo para criar um álbum que, ao que tudo indica, será um divisor de águas em sua sonoridade.

Nesta entrevista ele fala sobre outros momentos que acabaram por marcar este período que recobre quase uma década de carreira e no qual encontrou amor, inspiração, alento e um refúgio na música eletrônica e no ambiente que a circunda. Algo que pode ser raríssimo de encontrar e dificílimo de manter, mas que alguém extremamente talentoso, sincero e cativante como ele, parece atrair naturalmente.


HOUSE MAG – Sejamos arbitrários logo de início e nos debrucemos sobre os últimos cinco anos, desde que os seus lançamentos começaram a ganhar corpo e sua música esboçava os primeiros traços identitários. Olhando para trás, como eles passaram?

PEDRO ZOPELAR – Ah, tanta coisa rolou no decorrer desses anos! Lancei EPs, fiz remixes, teve o álbum com o The Drone Lovers, meu projeto no formato de banda mais convencional com o Davis e a Erica Alves, teve até um álbum meu lançado apenas em fita cassete. Penso que parece ser tanto tempo justamente por eu sempre me manter em constante ritmo de descoberta, de uma eterna busca por novas formas de me exprimir musicalmente. Isso foi algo que o Akin [cabeça da radio experimental Metanol e um dos curadores do RBMA Festival] me falou e que ficou comigo: estamos sempre buscando algo novo, constante e incansavelmente atrás de alguma coisa que só sabemos o que é quando encontramos. Aí tem aquele momento inicial de paixão, o tesão do recomeço que é fundamental para mim…

Principalmente nesse ínterim eu me dei conta de quais deveriam ser minhas prioridades, agora que tenho uma equipe para cuidar de todos os aspectos da minha carreira para que eu possa realmente me debruçar sobre o que é a essência dela: a música. A ODD, a Liminal, o Davis, o Marcio, a Larissa e um grupo de pessoas que me ajudam em muitos sentidos. O que aconteceu foi eu perceber a real necessidade de me conectar intimamente com o lado criativo da minha vida, de preservar esse estado de espírito no qual me sinto mais livre para me dedicar ao que mais gosto de fazer. Foi um momento de profissionalização, mas que não levou a uma rotina, que teria sido dolorosamente entediante… De qualquer forma, a parte mais instigante dessa busca é explorar, redescobrir e, no processo, me descobrir. Agora posso dizer que curto mais o que eu faço, exatamente por poder contar com as pessoas ao meu redor. Então percebo que essa liberdade é uma conquista que carrega uma grande responsabilidade com ela.


HM – Também teve o momento em que você foi selecionado para a Red Bull Music Academy em Tóquio. Imagino que deva ter sido um importante acelerador para sua atividade artística…

PZ – Olha, eu fui para lá em 2014 e se há algo que considero ter sido inestimável para mim ali foi ter me posto em contato direto com pares de diversos lugares do mundo. Gente que, como eu, lutava para encontrar sua personalidade artística assim como novas maneiras de materializá-la. Claro que o ambiente de incentivo que eles se esforçam em criar ali é algo único e muito reconfortante, especialmente a liberdade que eles oferecem para que façamos o que amamos. Mas trabalhar e trocar ideias com músicos, DJs e produtores – não apenas os que já admirava – que estavam nos mesmos estágios da carreira que eu foi imprescindível para me abrir novas perspectivas e vislumbrar possibilidades. Foi ali que me vi pela primeira vez como membro de uma comunidade global.


HM – Então isso agregou algo fundamental à sua formação musical clássica anterior?

PZ – Meu treinamento acadêmico foi incompleto na verdade. A vida no conservatório foi muito didática para mim, justamente por me mostrar o que eu não queria fazer de forma alguma como músico. Quando comecei a estudar, o que queria mesmo era regência, ser um maestro. Foi para isso que saí da minha cidade para enfrentar a vida universitária no Rio de Janeiro, mas logo notei que aquele ambiente não estimulava a criatividade, mas sim formava acadêmicos. Ficar dissecando partituras, estudando notação a fundo… nada a ver com o que eu sonhava e foi uma desilusão para mim, porque o que desejava era fazer música simplesmente.

E não posso esquecer que na RBMA eu tive a oportunidade também de aprender muitos recursos, fuçar no Ableton, ganhar segurança em muitos aspectos, como a de aprender regras para poder quebrá-las e me comunicar em outra língua. O que, para um mineiro como eu, é uma façanha, já que estou mais acostumado a ouvir do que a falar.

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HM – Essa timidez não se expressa quando você está ali, na frente de todo mundo, não é? Nesse sentido, dá para pensar na música como sua forma de comunicação predileta?

PZ – Não tenho dúvida alguma disso. Além daquela busca artística, também há o eterno autoconhecimento, aquela procura de si. Sei que musicalmente consigo expressar exatamente o que sinto e penso, há uma pureza que não encontro nas palavras, algo que nos conecta diretamente e é puro sentimento. Eu pessoalmente não consigo conceber uma melhor forma de comunicação entre um ser humano e outro.

Por exemplo, há uma faixa no meu álbum que eu fiz num momento de luto, de perda na minha vida e, quando o Tin Man, que foi um dos artistas que convidamos para vir tocar na ODD e é um cara que sempre respeitei imensamente como artista, me disse que era um “sad acid” e me senti realizado. Imagine só um gringo, já habituado a lidar com essas regiões mais tristes e sombrias da emotividade musical me dizer que entendeu o que eu queria passar ali… foi realmente especial!

Essa creio ser a mais valiosa parte de se fazer música instrumental, as possibilidades que ela abre de estabelecer uma comunicação não verbal são as coisas mais preciosas para mim como artista. Pessoalmente, prefiro a reclusão, mas tocar ao vivo é algo que também me alimenta, em todos os sentidos: vital e musical, é o que me sustenta financeiramente, mas também é um laboratório onde testo uma variedade de coisas. Tanto a parte de sentir como uma faixa nova soa num sound system treta quanto a de sentir a reação do público à execução de ideias que até então só existiam no estúdio.

Mesmo quando me apresento ao vivo acabo reencontrando elementos da minha vida que estavam submersos em algum lugar da minha memória, como quando toquei com o Teto Preto em festivais de música independente pelo Brasil afora, o Rec Beat em Recife e o Bananada em Goiânia, e vi como a reação das pessoas à música eletrônica é muito corporal, a interação com o show é totalmente diferente daquela que se dá com uma banda de rock e vi ali porque escolhi a música eletrônica dançante como meio para me expressar.


HM – Foi no decorrer desse aprendizado que você conseguiu criar uma sustentabilidade para o seu trabalho, conciliando uma agenda de apresentações que sempre exibiam certa dose de originalidade enquanto dedicava tempo para o estúdio. Como que você chegou a esse equilíbrio?

PZ – Para ser sincero, esse equilíbrio varia, mas procuro manter um cotidiano regrado a ponto de me reservar tempo para fazer tudo que quero e preciso, mas não a ponto de ser enfadonho e repetitivo. Então procuro ter momentos compatíveis: estúdio de segunda a quinta, para poder tocar nos finais de semana. É claro que se você pensar na Europa, tudo é mais fácil, as distâncias percorridas são menores e você pode até se dar ao luxo de escolher mais onde vai se apresentar. Ficar em casa fazendo música num sábado e domingo é algo raro que prezo muito e sempre resulta em dias muito produtivos.

Vir morar no centro de São Paulo também foi algo muito enriquecedor. Essa atmosfera de diversidade, esse misto de pessoas que encontro todo dia por aqui e no qual a aceitação das diferenças é cultivada diariamente são coisas muito inspiradoras, principalmente para um garoto do interior de Minas Gerais como eu, tímido e um tanto reservado, que vê nesse respeito mútuo e à privacidade um alívio. E a cidade mudou muito desde que cheguei aqui. Quando vim para cá, incentivado pelo Rotciv que vi tocando num barzinho na Bela Vista chamado Dropz. Aí conheci o Davis no D-Edge e fui no Vegas também. Vi o Vermelho tocando pela primeira vez no Tapas… Tantas lembranças boas de uma época em que tudo era novo pra mim e eu também era muito mais inocente.

Mas não sou saudosista. Jamais serei e discordo do que dizem tanto por aí sobre a cidade estar saturada, ainda que ache que ela possa ser bem impiedosa. A desigualdade gritante, assim como custo de vida alto que te força a tornar seu ofício num trabalho podem ser bem deprimentes e sufocantes criativamente. Não tenho boas recordações de quando tive de trabalhar com trilhas para pagar minhas contas, mas é justamente nesses momentos de incerteza, quando uma certa aflição vem à tona, que tenho meus picos criativos. Ao mesmo tempo, se você for ver, o Rio também tem um lugar especial nessa história e no meu coração: minha esposa é de lá, foi a primeira cidade grande em que fui morar para estudar e quisera eu que tivesse a cena que tem hoje com o pessoal do 40% Foda/Maneiríssimo à época em que vivi lá, talvez tivesse sido diferente.


HM – Acho que até aqui ficou bem evidente a importância que uma comunidade tem para você, de uma cena local a uma mundial. Ter esse contato com um gama de artistas que você sempre teve como exemplos é uma parte importante do que a ODD lhe oferece além de ser uma plataforma estável para suas experimentações?

PZ – É extremamente importante para mim! Afinal de contas, são nomes que eu tenho na mais alta estima como meus pares, mesmo que de certa forma me espelhe neles ou mesmo veja o que eles fazem algo muito especial para mim. Entretanto, se você for me perguntar quem me impressiona hoje em dia, vou te falar que é gente como o rHr, o Guerrinha, o Seixlack. E também nunca tive a pretensão de fazer festas, tal ideia nunca me ocorreu durante todo esse período que você definiu logo no começo, mas é essencial ter essa atmosfera ao meu redor. Até hoje não tenho uma ideia muito exata de como todo o processo se dá, e isso é fabuloso. Porque há toda uma equipe, uma família envolvida, nos apoiamos mutuamente e a confiança é recíproca.

Quando o Davis fez o convite para ser residente junto ao Vermelho, fiquei extremamente feliz, já que se tornou um porto seguro para mim, pois nunca tive outra “profissão”. Fazer o que faço é uma vocação, e como tal, você passa por diversos caminhos e encontra caminhos, momentos, pessoas que te tocam e interferem com você das mais diversas maneiras. E é aqui que a estabilidade se torna fundamental, porque o que me impele é sempre me renovar, trocar meu set up assim que vejo que explorei tudo que podia com ele. A ODD é um porto seguro nessa minha jornada. Foi ali que conheci o Tin Man, Juju & Jordash, o Legowelt, a Courtesy, que ironicamente esteve no mesmo ano na RBMA, embora não no mesma turma que eu e adorei poder conhecer pessoalmente.

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HM – Agora falemos dos momentos marcantes em eventos que fizeram você sair da sua zona de conforto. Creio que os mais emblemáticos deste ano foram o Dekmantel e DGTL, para o melhor ou para o pior, concorda?

PZ – Concordo que as circunstâncias de cada um foram bem diferentes, mas eu não diria que um foi pior e o outro melhor pra mim, foram simplesmente distintos. Realmente a experiência de pane no meu computador que rolou no Dekmantel foi contundente. Estava muito quente ali no palco UFO quando eu deveria me apresentar e isso superaqueceu minha máquina, que pifou. Mas depois decidi me divertir. Comecei a discotecar e funcionou para mim e para o público presente. É isso que importa afinal. Já no DGTL a reação do público foi espetacular e tudo que ouvi sobre aquele set foi positivo. Eu não deixo nenhum dos episódios me afetar demais, não me acomodo nunca num mesmo set up ou modo de me apresentar, isso faz parte de mim, e também não permito que essas agruras me definam. O lance do Dekmantel foi chato sim, mas me permitiu ver que confiava demasiadamente no meu computador, dependia dele demais. Então agora uso muito mais máquinas no meu novo formato e estou contente com ele… por ora.

A questão mais importante aqui acho que é a de me encontrar e reencontrar em diversas formas no meu ofício. Claro que é maravilhoso ver meu nome estampado na programação de um lugar como o PanoramaBar, por onde tanta gente que respeito já passou, mas não penso nisso como mais uma fonte de prestígio ou hype, mas sim de reconhecimento da qualidade do que faço. Minha vida ideal seria bem longe de redes sociais, sabe? Tenho fobia de lidar com essas ferramentas, mas elas são uma realidade necessária de divulgação do meu trabalho, ainda que aqui no Brasil isso seja negativamente exacerbado, já que a profissão é relegada a uma massificação excessiva e muito nociva. O que quero é poder tocar, lançar e não ter de me preocupar em fazer aftermovie.


HM – É interessante entender como você vê sua atividade, mais próxima de um artesanato do que a “arte” como é compreendida normalmente. E quanto aos projetos paralelos, como eles funcionam nesse regime criativo que é tão particular?

PZ – Eu acho que você tem razão, pois se você chamar de “artista” aquela figura mítica, idolatrada, e tudo que se refere a ela, todas as coisas extramusicais, então eu prefiro me considerar um artesão mesmo. E as parcerias fluem bem muito por conta disso, seja com o Davis, o Vermelho, Laercio, a turma do My Girlfriend… Para mim é muito estimulante poder trabalhar assim com outras pessoas com quem tenho afinidade e fazer coisas muito distintas, ajudam muito a aquietar essa minha personalidade musical tão dispersa.

Você pode ver que com o Gaturamo tenho uma pegada mais improvisacional que é justamente o que eu e o Laercio gostamos de fazer: pirar numa jam juntos, e muito influenciado na abordagem jazzística do Juju & Jordash que, inclusive, foi ele quem me mostrou. Já com o Sphinx e o que faço com o Davis, me permito organizar mais formalmente as ideias, ter um intercâmbio mais estruturado entre eu e eles, mas nem por isso menos divertido e espontâneo. O Teto Preto obedece mais a uma lógica de conjunto musical tradicional, onde tenho um lugar bem específico na composição e execução de cada trabalho e aí a contribuição de cada integrante. O My Girlfriend, por outro lado, é o mais despojado, é um projeto bem lúdico em que me autorizo a ser totalmente despreocupado de formalidades estéticas e deixo tudo fluir com os meninos. Em todo caso, a troca é uma parte fundamental, a reciprocidade.


HM – E o In Their Feelings? Como ele se encaixa nisso tudo?

PZ – O selo é meu outro porto seguro, um escoadouro muito necessário para minha criatividade. E não apenas isso, ele também me proporciona o privilégio de fazer a curadoria do trabalho alheio, o que é uma tarefa muito sensível, porque você deve valorizar o trabalho do artista e lançá-lo da melhor forma possível. Apesar de amar tocar, eu prezo bastante esse lance de ter um documento, um registro tangível do que é o seu som nesse momento específico da sua vida em um determinado estado de espírito. E fazer isso com o Davis e o Vermelho, junto a todo o cuidado com a arte, a masterização, a prensagem é algo muito gratificante.

E, no meio disso, há meu álbum, que vai sair em setembro e ao qual dediquei muito tempo e carinho, tanto que já reformulei a tracklist umas duzentas vezes até agora e devo fazer isso novamente mais umas cem até o lançamento. Contudo, no total, entre os lançamentos do selo, esse projeto e mais alguns EPs, um pela Connaisseur do Alex Flitch e outro pela Endless do Luca Bacchetti. Então essa é a prioridade para o resto do ano: aumentar a discografia, além de procurar fazer mais parcerias com artistas de outras linguagens, tentar elaborar outras criações não apenas musicais.


HM – Então dá para dizer que você é feliz com o que faz?

PZ – Inegavelmente. Há ainda alguns ajustes a serem feitos, mas eu sou muito afortunado de conseguir fazer o que amo e me sustentar através disso. Cada dia me traz algo novo, dentro e fora do estúdio e me reinvento, porque se tem algo que eu temo mais que qualquer coisa é ficar estacionado numa sonoridade. E por isso é importante lançar o que você produz, pois a partir do momento em que sua criação se torna pública, você não pode mais opinar, aquilo não pertence mais somente a você. E é por esse motivo que não me envergonho de nada que fiz até hoje, é tudo parte de quem já fui e ainda sou.

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