Sim, passou da hora de termos músicas em português na cena eletrônica nacional

Por: Flávio Lerner

Faltam mais faixas em português na música eletrônica nacional? A questão é tão antiga quanto pertinente — e segue atual. Lembro que quando o Meme esteve no Batendo Prato [programa de entrevistas da Ban TV, do DJ Ban], um internauta mandou essa pergunta pra ele. O DJ foi categórico: “não acho, não. Por que, você acha?” — o assunto morreu ali.

Meme é um amigo e uma lenda, mestre da house no Brasil, mas nessa eu discordo dele. E aproveito pra escrever sobre um tema que frequentemente passa pela minha cabeça já há algum tempo, e agora voltou à tona com este post do Sandro Horta, sócio da agência DJCOM:

Sim, Sandro, concordo; aliás, já passou da hora. Mas nós vivemos ainda em um país que em pleno 2016 segue com espírito de colônia — não dos portugueses que nos saquearam até o osso há mais de 500 anos, mas dos estadunidenses, que nos influenciaram com seu american way of life no século passado de um modo que repercute até hoje. Vamos fazer um exercício simples: pensemos nos mais consagrados DJs, festivais, clubs [tá vendo?], agências, faixas e discos da cena nacional. Quantos deles têm nome inglês e quantos em português? Sim, pode parecer uma questão trivial, mas é reflexo da relação que temos com nossa própria cultura e, consequentemente, linguagem.

O brasileiro tem síndrome de vira-latas, tem vergonha das próprias origens. É muito mais chique usar termos em inglês. Nós temos meetings e prospects em nossos business e startups, temos crushs e bffs, amamos nossos pets, gostamos de brownies e cupcakes [no meu caso, só se for vegan], tiramos selfies e startamos aqueles jobs e freelas dos nossos home offices. Pop up stores tão na moda, assim como a onda fitness, e se você procurar por um imóvel gourmet, vai encontrar incontáveis lounges, agillity dogs, baby spaces e walking distances — provavelmente de uma imobiliária cujo nome é um verbo italiano, tipo “confiare”. Afinal de contas, se você paga meio milhão num imóvel, tá mais do que no seu direito de lavar a roupa numa connect laundry, porque né, lavanderia é coisa de gentalha.

Claro que nem todos os estrangeirismos vêm dos mesmos motivos. A globalização possibilita uma miscigenação cada vez maior — os próprios norte-americanos usam termos estrangeiros, normalmente do francês. Na nossa cultura DJ usamos um caminhão de termos como “track”, “label”, “release”, “after”, “booth”, “set”, “back to back”, “mixtape”, principalmente pelo fato de essa ser uma cultura totalmente importada mesmo, e muitas vezes não temos palavras similares no nosso dicionário. Agora, no Brasil esse bicho parece pegar com mais força, muito antes mesmo da web 1.0. Principalmente nós, da classe média, queremos ser Americans. It’s so fancy and cool, baby. Nosso complexo de inferioridade é tão forte e destrutivo que chegamos a renegar o que temos de melhor, que é nossa cultura, nossa música.

Na recém-saída House Mag #44, assino a reportagem “Vira-latismo, techno e o groove brasileiro” que aborda justamente essa questão [em breve esse texto também sairá aqui na edição online, vale ficar ligado!]. Não falo em linguagem, mas em como o clubber brasileiro renega ou desconhece a musicalidade do seu país, e como os DJs e produtores nacionais querem imitar os gringos. Diferente deste artigo, baseado majoritariamente na minha opinião, a matéria é investigativa — entrevistei ninguém menos que Marky, Patife, Camilo Rocha, Tahira, Omulu, 440, Trepanado [do duo Selvagem], Phillipi [do Fatnotronic] e Júnior Santos pra chegar a algumas conclusões bem interessantes. Um dos argumentos é de que o brasileiro tem que fazer sucesso lá fora pra poder explodir aqui, o que vai ao encontro da teoria do vira-latismo. Foi assim com Marky, Patife e companhia: se eles não tivessem a sorte de chamar a atenção dos londrinos com seu drum’n’bass com pegada brasileira, a história da cultura de pista nacional seria muito diferente. Pouco tempo depois o próprio Patife fez músicas bem bacanas em português com a Fernanda Porto, enquanto no começo dos anos 90 outra Fernanda — a Abreu — já tinha lançado um disco antropofágico e revolucionário pra cultura clubber brazuca: SLA Radical Dance Disco Club [leia mais sobre aqui].

Sempre teremos o conveniente argumento de que o objetivo é fazer sucesso internacional, então por isso os nomes e as letras em inglês. Mas até que ponto ele é realmente verdadeiro? Não seria apenas uma racionalização simples pra justificar tudo e nos manter na nossa zona de conforto? Por que clubs e festivais nacionais, para o público interno, têm nomes in english? E os brasileiros de maior sucesso global, cantavam em que língua? Samba, bossa nova [ok, com versões para o inglês depois do sucesso instaurado nos EUA], tropicália, MPB, samba rock, jazz-funk, manguebeat e agora o tão amado e odiado funk carioca [nosso único estilo de dance music original do Brasil] fizeram e fazem sucesso pra caramba lá fora; o gringo admira muito mais nossa cultura do que nós. Som brasileiro é exótico, um diferencial que temos a favor no nosso próprio sangue. Então por que renegar? Não vejo nada de errado em artistas daqui usando nomes estrangeiros e fazendo techno europeu, mas me entristece que esse seja o status quo na nossa cena 4×4 e haja pouco espaço para o diferente [a cena bass é um caso à parte e sempre abraçou a nossa cultura — de Marky e Patife a Omulu e Tropkillaz].

Pra fechar este artigo, deixo vocês com uma seleção de dez tracks [hehe] maravilhosas em nossa língua. Tirando uma que outra, são de uma galera mais alternativa, que tá fora desse circuito mais consolidado da cena nacional, mas que não deve nada pra ninguém em termos de arte — muito pelo contrário. Porém, como o Sandro apontou, temos ainda assim muitos samples de música brasileira pra pouco vocal original em português. Bóra virar esse jogo?

Um dos meus produtores favoritos, o mineiro psilosamples vive sampleando elementos nostálgicos da cultura nacional, como Chaves [em português, óbvio] e Os Saltimbancos, além de ritmos regionalistas como o baião; no Soundcloud do cara, que já abriu show pro Caetano Veloso, você encontra bootlegs lindos pra Jorge Ben, Roberto Carlos, Tetê Espíndola e Grupo Raízes; em sua discografia, faixas com nomes como “Super Mulambo”, “O Príncipe da Roça” e “Bom Dia Menina Pelada!”

 

Carrot Green é um produto carioca e DJ de mão cheia, que foi pra Red Bull Music Academy em 2013 e vem se destacando cada vez mais, no Brasil e na Europa; uma edição de entrevista que fiz com ele para o LOFT55 também saiu na House Mag #44

 

Fresquinha, deste ano, “Karma” é uma das primeiras faixas 100% autorais do Fatnotronic, que agora assinam como Phillipi & Rodrigo nas originais — o nome Fatnotronic segue sendo usado pros edits de disco music brasileira que eles tanto já fizeram desde 2014; música brazuca com vocal em português lançada em selo belga e tocada por muito DJ gringo

 

Com o Projeto Mujique, “Cosmossamba” leva a assinatura do Thomash, alemão que morou anos no Brasil e ajudou a mudar muita coisa na cena nacional; é uma das principais figuras do coletivo VOODOOHOP, e seu trabalho leva muita influência da cultura brasileira

 

Assim como o Fatnotronic, o duo carioca/paulista Selvagem vem fazendo bastante sucesso internacional com sua releitura da disco brasileira, em uma adaptação que batizaram de “balneárico”; há três anos, lançaram para a Beats in Space três faixas, incluindo esse edit de versão brasileira de “I Feel Love”, clássico da Donna Summer

 

Há dois anos, o cada vez mais consagrado produtor de techno L_cio veio com esse edit sensacional de “Construção”, do Chico Buarque

 

Daniel Moreira, o Danne, recém lançou seu projeto de “new bossa”, como ele chama; a prioridade, até o momento, foi de resgatar pérolas da música brasileira em bootlegs houseiros e, com os amigos do duo Arcade Fighters, lançou esse edit de “Carolina Carol Bela” — a mesma faixa do Jorge Ben e o Toquinho sampleada pelo Marky e o XRS em “LK”, hit que explodiu lá fora e mudou nossa cena no começo dos anos 2000

 

Na cena brasileira do deep house — uma das mais populares já faz um tempinho —, os produtores Fran Bortolossi e Ander foram contra a maré e lançaram esse edit de Tim Maia; uma faixa em português na LouLou Records

 

Em 2001, Marky, Patife e Fernanda Porto lançaram essa pérola do d’n’b nacional

 

E pra fechar a lista, um caso peculiar: “Cira, Regina e Nana”, canção de 2011 de Lucas Santtana, foi sampleada pelo duo italiano Tosca, em mais uma amostra de como nossa música faz sucesso lá fora

 

 

 

 

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