Fotos: Renato Souza
Antes de ser usado como droga para as pistas, o MDMA era, no início dos anos 80, apenas um “remédio” para desinibir as pessoas. Era usado em algumas sessões de terapia, para o sexo ou para uma pessoa ou um grupo de pessoas que quisessem melhorar a sua experiência social. Essa experiência migrou para os clubs, quando o house e o techno ainda eram novidades, e então o MDMA foi proibido.


HOUSE MAG – Por que redução de danos é o caminho a se seguir?
Guilherme Storti: Digo que a Redução de Danos (RD) pode ser o melhor caminho a se seguir, porém não o único. Trabalhar como redutor de danos me atrai pela possibilidade de ajudar diversas pessoas a serem protagonistas de suas próprias vidas. A RD é pautada na promoção da autonomia dos usuários de drogas, pois são sujeitos dignos de fazer suas próprias escolhas, sem que o Estado ou qualquer outra instituição ou órgão interfiram nisso. A RD não necessariamente cobra do individuo uma interrupção completa do uso (abstinência), mas sim uma reavaliação de como está sendo a repercussão daquilo na sua vida, provocando uma reflexão que pode resultar na conclusão de que se deve readequar o uso de drogas para que isso não interfira de forma negativa na vida da pessoa. Trabalhar com redução de danos possibilita lidar com a problemática do uso de drogas a partir de uma perspectiva crítica, realista, e não moralista, proibitiva e punitiva.
HM – Conte-nos um pouco sobre o Coletivo Balance e como ele atua nas festas de música eletrônica.
Marcelo Andrade: O Balance nasceu de uma pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do PPGCS da UFBA, orientado pelo Prof.Edward MacRae, como escolha metodológica sobre usos e usuários de drogas sintéticas em festas e festivais de música eletrônica. Poderia ser na cena no pagode ou do axé ou do rock. A existência de Coletivos de usuários na Europa (Energy Control – ES e Techno Plus – FR) e nos EUA (MAPPS e Dance Safe) também serviram de inspiração para propor para um grupo de usuários e frequentadores da cena de música eletrônica de Salvador a criação de um coletivo de pessoas que se dedicasse a pensar os usos e estratégias para reduzir riscos e danos associados ao consumo dessas substâncias em festas e festivais de música eletrônica. No início foi fundamental o diálogo e a parceria com o Coletivo Soononmoon, que desde antes de 2005 já era uma referência nas festas de música eletrônica no norte-nordeste, além de outros produtores associados ao Balance.
Essa configuração coletiva, rizomática e solidária, sem fins lucrativos, e com finalidades de pesquisa e criação gerou um conjunto de saberes e fazeres atualmente pioneiro na América Latina.
O pioneirismo do Balance é um resgate à tradição da segunda geração da Redução de Danos europeia construída e realizada com os usuários e para os usuários. A técnica é infalível e não precisa realizar grupo focal ou pesquisa de opinião. A participação de usuários, que encontram mais problemas que soluções associados abuso de substâncias psicoativas, é a chave da criação e inovação do Balance no cenário nacional e internacional.
No início nossas ações realizavam estratégias que tinham origem na participação dos usuários, dentre eles especialistas e a mim na condição de pesquisador-participante do processo. Além das parcerias fundamentais em Salvador com o Coletivo Soononmoon e nacionalmente com o Festival Universo Paralello.
A partir do segundo ano do Universo Paralello (2007-2008) começaram a participar das ações profissionais associados ao CETAD (Centro de Estudos e Terapias do Abuso de Álcool e Outras Drogas) e a SESAB (Secretaria de Saúde do Estado da Bahia) e com a colaboração do CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas). As ações lidam com a distribuição de informações de redução de danos sobre álcool e outras drogas (LSD-25, “ecstasy”, cocaína, e outros estimulantes tipo anfetaminas, maconha, crack, dentre outras) e a distribuição de preservativos. Desde o início percebemos que os modos de distribuição de preservativos tinha que ser diferente, pois esse público lida de modo distinto com a sexualidade em relação a cena do pagode ou do axé, por exemplo. Também utilizamos estratégias e técnicas no SOS BadTrip com parceiros e especialistas do campo vincular e do Acompanhamento Terapêutico.
Desde 2015 não trabalhamos mais com campanhas impressas para investir mais nas artes plásticas, visuais e perfomáticas como meio para atingir o público de festas e festivais de música eletrônica.
Vídeo em inglês. Trabalho de coletivos nos Estados Unidos
HM – O que o governo acha disso? Existe algum momento em que o seu trabalho pode se tornar “apologia”? Quais são as limitações atualmente?
Guilherme Storti: O governo da Bahia tem progredido bastante com a pauta da redução de danos, mesmo que ainda esteja longe do ideal. Antes era comum a redução de danos ser considerada “apologia ao uso de drogas” por ser uma prática que visa orientar o usuário, ao invés de coibi-lo. Atualmente, a principal limitação continua sendo a política proibicionista/ moralista, que além de todas as mazelas provocadas com a guerra às drogas, também limita as informações transmitidas à população. Sabemos que a educação é o principal caminho para lidarmos com a “problemática” do uso de drogas, mas precisamos investir em um modelo que priorize a informação de caráter científico e não moral.
HM – Quais são os obstáculos mais comuns para se trabalhar com redução de danos em festivais de música eletrônica? E, em contrapartida, quais são os resultados positivos mais evidentes?
Marcelo Andrade: A principal dificuldade encontrada é o financiamento destas ações, pois por não sermos uma ONG, ficamos dependentes dos produtores dos festivais em que trabalhamos. Mas, mesmo com as dificuldades, a parceria com o Universo Paralello tem possibilitado nossas ações e inovações no decorrer desses 10 anos de existência do Balance. Os resultados mais positivos são os diversos tipos de aprendizados e vivências que nós temos nestes ambientes (que sempre evolui de uma edição para a outra), feedback positivo tanto da produção da festa quanto das pessoas que visitaram o nosso infostand ou passaram pelo SOS Bad Trip.
HM – O trabalho dos coletivos de redução de danos parece ainda bastante “underground” aqui no Brasil. Os festivais grandes e mainstream que acontecem por aqui, como o EDC, Lollapalooza, Tomorrowland, XXXperience, entre outros já chegaram a entrar em contato?
Marcelo Andrade: Os coletivos que não são ONGs, e não priorizam a participação em editais, acabam sendo bastante underground mesmo, pois a sustentabilidade desse tipo de dispositivo é bastante complexa. Festivais grandes como o Lollapalooza, Tomorrowland e XXXperience não têm muito interesse nesse tipo de iniciativa, pois eles entendem que assumir um projeto de redução de danos significa assumir que naqueles espaços existe o consumo de substâncias psicoativas, daí entram numa situação de não querer arcar com nenhum tipo de conflito com a lei.
HM – Em algumas situações, como no caso recente do rapaz que morreu no hospital após passar mal no Ozora Festival, a questão da redução de danos divide opiniões em meio ao público. Uns acreditam que essa é mesmo a solução, outros acreditam que é cada um por si, que se passou mal é porque foi irresponsável no uso da droga. Quais são os mitos envolvendo esse tipo de afirmação?
Guilherme Storti: No caso do Ozora não ficou muito claro o motivo da morte do rapaz. Foi relatado que ele fez uso de LSD e deu entrada no hospital com uma hematoma na cabeça. Infelizmente ainda não se sabe o que, de fato, causou a morte. Não existe nenhum dado científico consistente que relate mortes por uso excessivo de LSD. Sabemos que é uma droga que altera bastante a percepção de quem está usando e que pode levar os usuários a terem experiências psíquicas bem difíceis, caso não estejam preparados e informados sobre o uso daquela substância.
A redução de danos é uma das portas a serem acessadas, deve-se investir cada vez mais no acesso a informações sobre uso de drogas seguro, pois muitos “acidentes” que acontecem decorrentes do uso de substâncias psicoativas, se dão pela falta de informação. Também acredito que os profissionais de saúde que trabalham nestes ambientes, devam ser capacitados periodicamente para atuarem dentro de uma lógica que acolha melhor o contexto das crises que se apresentam nesses lugares, que são bastante peculiares. O uso “irresponsável” existe, mas não necessariamente por culpa dos usuários, mas sim por conta de um sistema que priva uma série de informações para que a sociedade compreenda melhor o fenômeno do uso de drogas.
HM – Além do trabalho dos coletivos, de quais formas o próprio público pode se ajudar e assim tornar essa questão uma preocupação coletiva?
Guilherme Storti: O público deve cada vez mais procurar a informação. Mesmo com todas as dificuldades em se abordar a temática, a internet tem um vasto acervo para ser pesquisado. Cuidar do corpo e da mente são fundamentais. Outro caminho a ser percorrido pelo público é pressionar cada vez mais as gestões municipais, produtores de festas (e grandes festivais) a investirem em uma estrutura de atendimento médico que também conte com uma equipe de redução de danos, para que juntos possam atuar em parceria e evitarem que qualquer intercorrência mais grave aconteça. Isso, inclusive, é válido para qualquer tipo de ambiente festivo, e não necessariamente apenas em festas de música eletrônica.
HM – Muitos veículos de comunicação viram o rosto para esse assunto, e muitos outros fazem tradicionais campanhas sensacionalistas/ moralistas. O que você acha disso e qual seria o papel ideal desses veículos sobre essa questão?
Guilherme Storti: Acredito que a grande mídia poderia cumprir um importante papel de esclarecimento sobre o uso de drogas para a nossa sociedade, mas infelizmente vivemos em um contexto político/ social bastante conservador, o que impede com que isso aconteça. Porém a internet vem ocupando um espaço bastante importante nesse sentido, pois tem sido uma boa alternativa para se ter acesso à informações mais esclarecedoras. Mesmo assim é preciso ter muito cuidado ao acessar qualquer informação sobre o uso de substâncias psicoativas, e acessar mais de uma fonte de pesquisa é o mais recomendado para se ter acesso às informações mais seguras.
HM – Você acha que o Brasil já está pronto para discutir legalização/regulamentação? Se não, o que ainda falta?
Guilherme Storti: Ainda falta quebrar muitos tabus para que a população brasileira consiga compreender a importância de se regulamentar o uso de substâncias psicoativas. Primeiramente, vejo como grande necessidade um grande investimento em educação para o uso de substâncias psicoativas, para que esse conhecimento seja de base escolar. Precisamos nos dar conta de que é extremamente necessário falar abertamente sobre drogas com os adolescentes, por exemplo, e não privá-los de qualquer tipo de contato com as substâncias, ou transmitir informações equivocadas, pois é nessa fase da vida que se dá muitas experiências importantes com as drogas. Precisamos também formular políticas públicas com maior participação dos usuários de drogas, pois eles que sofrem todas as consequências da falta de informação, colocando em risco a sua saúde, e a violência gerada pela grande guerra que foi criada contra as pessoas que escolheram usar drogas. Acredito que, como ponto de partida, a população pode começar a tentar compreender melhor o contexto das pessoas que fazem o uso de qualquer substância que seja. O acolhimento é o primeiro passo.
HM – Por fim, de acordo com seus conhecimentos, o que tem acontecido ultimamente no “mundo das drogas” por aqui que parece ser mais alarmante? (essa pergunta é sobre alertas, drogas adulteradas, etc)
Marcelo Andrade: Destaca-se o caso do N-BOMe e no que a maioria das pessoas ainda acreditam ser cocaína. No primeiro caso os usuários reportam que adquiriam uma substância como LSD-25, mas os efeitos eram outros, diferentes. Um adulterante do LSD-25, também psicoativo o NBOMe passou a ser consumida de forma intencional. O que agora representa um outro conjunto de potenciais danos à saúde humana no consumo dessa substância que apresenta risco de parada cardio-respiratória. Por último e muito grave, começaram a chegar reportes de usuários que indicam para a adulteração da substância que tem sido vendida como se fosse cocaína, mas que quando testadas indicam presença de opiáceos (codeína) e opioides (oxicodona), anfetaminas e meta-anfetaminas, a exemplo da ritalina [metilfenidato] e ketamina). Com certeza essas noticias que chegam do campo dos usuários que realizaram os testes precisam ser confirmadas por instituições de pesquisa, agências e forças governamentais por meio de métodos e técnicas cientificas e laboratoriais.